O que raio acabou de acontecer na Netflix? Aconteceu Baby Reindeer

Série de Richard Gadd é comédia e drama sobre violência sexual e stalking e põe os homens na linha da frente. A sua popularidade é merecida, a atenção é devida.

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Richard Gadd em Baby Reindeer Netflix
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O que raio acabou de acontecer? Aconteceu Baby Reindeer e a comédia e a violência sexual nunca foram tão cruas num ecrã, isto na perspectiva masculina — Michaela Coel já o tinha feito, em I May Destroy You, obra magistral que vinha de uma experiência infelizmente real e que ela ficcionou e também tornou livro. Agora, aconteceu a Richard Gadd e dói. E também faz sorrir. Porque é especial e porque também é assim, para alguns, que se processa o trauma. Calha ser também uma grande história. Neste momento, é a série mais vista na Netflix em Portugal, nos Estados Unidos e no Reino Unido.

Não é, porém, a sucessora natural de O Problema dos 3 Corpos, campeã das últimas semanas no ranking das séries em língua inglesa da plataforma líder do streaming. É mesmo o oposto disso. A sua popularidade tem-se alimentado sobretudo do passa-palavra. E as palavras de Richard Gadd, tornado Donny Dunn nesta série que escreve e protagoniza, são pesadas: agressão sexual, sedução e abuso de poder, perseguição obsessiva, auto-ódio, por aí fora.

"Baby Reindeer" é a alcunha que Martha, a mulher que se cruza por acaso com a vida de um comediante ainda à procura da sua sorte, dá ao empregado de bar que tem um gesto de gentileza para com ela. Donny trabalha num pub, e tudo se desenrola a partir daí. Como o problema dos “stalkers é algo incompreendido pelas autoridades, como se desenrola um novelo de trauma muito mais complexo e profundo, como se calhar até é melhor ver a série de sete episódios de menos de 30 minutos sem saber exactamente do que trata. Não que daqui para a frente se sigam spoilers, mas porque Baby Reindeer justifica o raro convite a parar de ler, ir ver e depois, eventualmente, retomar esta ou outras leituras.

“Fui gravemente perseguido de forma obsessiva e gravemente abusado”, disse Richard Gadd ao jornal britânico The Guardian na semana passada. A série é uma adaptação do espectáculo homónimo e de Monkey See Monkey Do, o outro espectáculo que levou ao palco do festival de comédia de Edimburgo em 2016, e em que contava como foi violado e mergulhava na explicação mais íntima do efeito desse ataque, da forma como isso se entrelaçou com o seu desejo de ser bem-sucedido na sua profissão. Não era para ter piada, mas ganhou ainda assim o prémio do ano no Fringe.

Como explica o autor e protagonista — que, sim, tem piada, mesmo na sua exploração de números humorísticos que claramente não têm muita piada —, Richard Gadd queria que a sua história “existisse na esfera da arte”. Fala disso ao Guardian para explicar detalhes técnicos, como a cronologia dos acontecimentos ou a mudança de nomes de personagens. Mas é um resumo do que Michaela Coel e ele, como alguns outros, fazem em nome da sua pulsão de expor ou simplesmente explorar o problema de violência sexual enquanto contadores de histórias.

Há outro caso, até agora mais intrigante, a desfiar actualmente no streaming: Jerrod Carmichael Reality Show, na HBO Max. O comediante que fez de Rothaniel o seu passaporte para uma fama maior e para uma vida mais verdadeira, porque nela revela a sua homossexualidade. A certa altura, quase que a si mesmo. São oito episódios de uma série documental que expõe muito. Em Portugal, ainda só se estrearam quatro.

É um “desconforto desnecessário”, como explica o New York Times, e basta visitar o Google para ver que a pergunta “O Jerrod Carmichael Reality Show é real?” é a primeira da lista, de tal forma é angustiante — e um prolongamento, com os códigos de um formato diferente daquele que lhe deu o Emmy por Rothaniel (2022), da exploração que faz da sua própria personalidade e do riso nervoso ou do vazio do riso.

Homens vulneráveis, tomando liberdades para falar com o mundo e esperar que alguém ouça. Carmichael e Gadd são comediantes oblíquos ao mainstream do comediante masculino, e o produto final é desconcertante. Se é real ou não, para já só podemos falar de Baby Reindeer. Gadd subiu ao palco em Edimburgo com o monólogo revelador já escrito, por exemplo. Na série, não é bem assim. Mas os temas estão todos lá. O riso fora do palco, o questionamento da masculinidade e da culpa, o desejo muito honesto do sucesso.

Postas assim as coisas, parece um convite a ver algo “difícil”. Não é. Mas envolve sacrifício por parte de quem conta as suas histórias e só por isso vale a pena dar-lhe tempo.

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