Amores platónicos
Não me parece muito diferente das paixões de carne e osso, que acontecem todos os dias, e que também começam sempre com uma ficção, uma ilusão quase sempre exagerada acerca de quem o outro poderá ser.
O meu primeiro namorado chamava-se John Lennon e cantava numa banda razoavelmente popular chamada: The Beatles. Eu tinha 6 anos quando me apaixonei por ele e por um descuido cronológico nunca nos chegámos a conhecer, visto que ele morreu exatamente dois anos e três dias antes de eu nascer.
Quando os meus pais me comunicaram que o meu então amado tinha sido assassinado anos antes à porta da sua casa em Nova Iorque, fechei-me no quarto e chorei silenciosamente como uma Julieta que perde inesperada e tragicamente o seu Romeu. Foi sobre o edredão de fibra que verti copiosamente o meu primeiro desgosto romântico, a suspeitar precocemente que seria longa e inacabada a minha incompreensão diante da desordem do Universo, e da impossibilidade aleatória de alguns encontros amorosos. Ficava assim apresentada às angústias do Amor — a abrir a pestana desde a primeira infância.
Prossegui a minha adoração pelos Beatles e, recuperada do desgosto, tive outras relações à distância: dos 10 aos 14 anos namorei com o Josh Brolin, protagonista da então série Os Jovens Cowboys (uma das minhas relações mais longas), relação esta que tive de terminar para poder dar asas à minha paixão pelo vocalista dos Red Hot Chili Peppers: Anthony Kiedis.
Poderão argumentar alguns fanáticos pela veracidade que estas relações não foram reais, que eram meramente fictícias. Mas eu contesto que me apaixonava perdidamente por alguém cujas características (físicas, intelectuais, humanas) me atraiam profunda e visceralmente. E que mesmo que não conhecesse estes sujeitos na sua integridade, todo o restante que eu desconhecia, tudo o que não era demonstrado publicamente e me era oculto, eu encarregava-me de fantasiar e especular — completando a imagem dos meus adorados com as demais características que eu adivinhava e desejava.
Estreitava uma proximidade especulativa, um futuro em conjunto. Esculpia aquela outra metade tão compatível comigo, que me completava na forma de uma concha que se fecha em duas partes, a guardar a pérola do amor. Não me parece muito diferente das paixões de carne e osso, que acontecem todos os dias, e que também começam sempre com uma ficção — uma ilusão quase sempre exagerada acerca de quem o outro poderá ser. O mais certo é que o outro não seja absolutamente nada do que fantasiámos. Mas não deixa de ser fascinante e incompreensivelmente arrebatador quando, depois de caminharmos às cegas e aos apalpões, nos vemos defraudados, e amamos profundamente a desilusão da descoberta daquele que realmente se esconde por trás do que tínhamos imaginado.
E se tivermos sorte, somos presenteados com alguém igualmente entusiasmado com a deceção de nos conhecer, e feliz por repetir o gesto de acariciar o molde imperfeito dos nossos contornos, das nossas ranhuras menos polidas, das nossas esquinas (algumas bem bicudas) e limites. Como num disco de vinil, onde depositamos delicadamente o braço da agulha, para tatear os sulcos microscópicos que são o que faz a agulha vibrar, a canção tocar.
Eu ouvia os Beatles no meu gira-discos antigo repetidamente… Colocava a agulha sobre a linha que correspondia à primeira faixa e escutava as mesmas canções, uma a seguir à outra… Repetia as letras de cor. Nessa altura gostava de jogar comigo própria um jogo que era o de cantar todos os refrães de canções dos Beatles de que me conseguia lembrar. Quando queria impressionar alguém, dizia: “Queres ver quantos refrães dos Beatles seguidos consigo cantar?” Num golpe de agilidade mental que (somente) eu achava verdadeiramente espantoso, cantava ininterruptamente e quase sem respirar, 26 refrães em inglês — expelidos pela boca quase roxa de uma pré-adolescente em risco de auto-asfixia. Batia o meu próprio recorde pessoal, que era provavelmente o recorde mundial. Porque só estava eu a jogo.
Muitas vezes imaginava que conversava com o Ringo, o George, o Paul e o falecido John… E eles não eram bem amigos imaginários… porque existiam! Só não existiam no mesmo raio geográfico que eu, mas existiam. E eram bons ouvintes.
Às vezes perseguimos à procura dos amores imaginários, tão irreais como os amigos que inventamos na infância. Quando lhes damos corpos e rostos concretos, quando existem na realidade, podem ser enganadoramente verídicos, como os quatro homens vestidos de músicos de fanfarra que se sentavam na beira da minha cama enquanto me cantavam: “Limitless undying love/ which shines around me like a million suns/ It calls me on and on… across the universe…”
Quando o meu primeiro namorado de carne e osso se sentou na beira da minha cama, não pude deixar de sentir uma certa pena que ele se mostrasse tão parecido com ele mesmo, e que às vezes não fosse capaz de escutar o que eu estava a dizer, mas entender que no fundo o que eu queria dizer era exatamente o seu contrário, como os quatro magníficos de Liverpool. Que não fosse tão compreensivo como o Ringo, tão complacente como o George, tão carinhoso como o Paul, tão inspirador como o John…
Tive uma amiga que era viciada em amores platónicos. Tinha tido uma relação longa que falhara, uma família que se desagregara e, desde então, apaixonava-se por pessoas impossíveis: não eram cantores pop, nem atores de Hollywood, mas eram, de alguma forma, figuras acerca das quais sabia que, por vários motivos, nunca viria a ser possível nem exequível (nem desejável) aproximar-se.
Se calhar os amores platónicos são uma forma de nos isolarmos. De ficarmos apaixonados para dentro, com um namorado imaginário. Para se estar junto a fingir quando estamos sozinhos, com medo de ficarmos sozinhos a sério quando estamos com alguém.
As histórias a fingir nunca acabam mal. As histórias a fingir nunca acabam.
Se calhar são uma forma de nunca nos desiludirmos e, portanto, nunca experimentarmos a doçura amarga de descobrir um outro que é muito diferente, maior, mais estranho do que aquilo que supúnhamos, e por isso nos transcende. Ou, se calhar, de ficarmos para sempre fechados na conchinha muito polida da imagem que queremos mostrar, encerrados dentro dela, para que ninguém descubra os sulcos que desenham as nossas canções mais tristes e imperfeitas. Conservados em lata no consolo da nossa alma gémea de trazer na manga.
Curiosamente, a imagem das almas gémeas descrita em O Banquete, de Platão, soa quase tão claustrofóbica quanto isso: “Pôs-se (Zeus) a cortar os homens às metades, exatamente como se cortam sorvas para as pôr em conserva (…) Ora quando a forma natural se encontrou dividida em duas, cada metade, com saudades da sua própria metade, se lhe reunia; enlaçadas uma na outra, não mais aspiravam do que a fundir-se num só ser! Começaram, assim, a sucumbir à fome e à inação geral, porque se recusavam a fazer fosse o que fosse uma sem a outra.”
A ideia de que as ligações que nos fendem, a sensação dos desencontros que nos rompem, é verdadeiramente arrepiante: faz eriçar os pelos e os cabelos na nuca, como quando a agulha risca o vinil, ou quando as unhas raspam no metal. Às vezes, quase juramos sentir que se riscou qualquer coisa dentro de nós. Mas recuperamos do calafrio. A pele repousa. Limpamos a agulha, suavemente, e pousamo-la com a pressão certa para escutar outras canções.
Não sei quando é que terminei com os Beatles. Um dia cansei-me de bater o meu próprio recorde. Comecei a preferir ir a jogo com outros, mesmo quando havia o risco de perder. Fui vendo os Beatles envelhecer, longe da imagem cristalizada e fictícia. (Agora, sempre que o Paul aparece sorridente numa entrevista, reparo no seu rosto cravado por sulcos e imagino que canção tocaria a sua pele fosse a superfície de um vinil.)
O homem que assassinou John Lennon era um cristão fanático apaixonado por Deus e pelos Beatles. Quando no álbum John Lennon/Plastic Ono Band, John se atreveu a cantar a solo e afirmar que não acreditava na Bíblia, e descrever Deus como "um conceito", o seu fã Mark Chapman decidiu alvejá-lo com quatro tiros à queima-roupa. Aparentemente também ele tinha um amor platónico pelos Beatles e por Deus, uma imagem de tal forma perfeita, montada e encerrada que, se tornou demasiado trágico desconstruí-la. Preferiu matá-la.
Pelos vistos há pessoas que não aguentam o poder da realidade sobre a ficção, que ficam encerradas na ideia das almas gémeas que precisam de se fundir, e que esta é a única hipótese do Amor. Mas quando leio a letra que John escreveu, não consigo evitar sentir alguma esperança… A letra dizia qualquer coisa como isto: “Deus é um conceito/Eu não acredito na Bíblia/Eu não acredito em Tarô/ Eu não acredito em Jesus/Eu não acredito em Kennedy /Eu não acredito em Beatles/ Eu apenas acredito em mim/Na Yoko e em mim/Essa é a realidade/O sonho acabou.”
Afinal, a realidade é possível, onde termina o sonho. Não será isso o Amor?
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990