Entre sardinhas e bonecos, nas Festas do Senhor de Matosinhos celebra-se o mártir que veio do mar
As festas do Senhor de Matosinhos estendem-se por Maio para celebrar a devoção da cidade e dar as boas vindas à sardinha. Este ano, as estrelas maiores são os bonecos que guincham e perdem a cabeça.
A festa começou, há 700 anos, por ser “de todo o povo de Matosinhos”. A romaria do Senhor de Matosinhos ganhou fama nacional e é hoje, além da “mais antiga do Norte”, uma das mais concorridas. A programação das festas começa este fim-de-semana e estende-se até 2 de Junho com uma celebração especial da tradição popular do fogo dos bonecos.
No ano passado, as festas do Senhor de Matosinhos receberam cerca de dois milhões de visitantes, segundo a Câmara Municipal de Matosinhos. A romaria de devoção religiosa tornou-se uma espécie de celebração do início do bom tempo: ao final da tarde as famílias com crianças vão até ao parque de diversões, come-se qualquer coisa nas tasquinhas depois do trabalho, com amigos, e há almoços de empresas para provar a sardinha assada: o team building chegou ao Senhor de Matosinhos. É normal, porque “a festa do Senhor de Matosinhos é de todo o povo”, garante Agostinho Sá Pereira, presidente do Napesmate — Núcleo de Amigos dos Pescadores e Matosinhos.
O Fogo dos Bonecos ganhou um livro
Agostinho, filho de uma família de pescadores, recorda uma festa cheia de gente sentada com farnéis no adro da igreja. Queriam guardar lugar para ver o fogo preso, entretanto proibido por razões de segurança. Ficou o fogo-de-artifício, que este ano acontece à meia-noite de dia 18, para iniciar o fim-de-semana de maiores festejos, com o pico no dia 21, feriado municipal. Nesse dia acontece o tradicional fogo dos bonecos. “Há 72 anos que me lembro de ver o fogo dos bonecos. São uns bonecos com rodas a assobiar de um lado para o outro, lembro-me bem de um barbeiro a fazer a barba a um cliente. Nós andávamos de volta deles até a cabeça lhes rebentar”, lembra. Agora há um cordão de segurança, mas mantém-se esta tradição singular no jardim do Parque 25 de Abril.
Os bonecos são, na verdade, movidos por um foguete que rebenta no seu interior — andam de um lado para o outro até rebentar um novo foguete na cabeça da marioneta. A história e relação deste espectáculo com as profissões locais (representadas pelas figuras) e com a devoção religiosa são exploradas no livro Matosinhos. O Fogo dos Bonecos, do historiador Joel Cleto. O lançamento acontece no dia 21 às 16h, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, mesmo antes de os bonecos começarem a girar às 19h.
Boas-vindas à sardinha
Esta celebração é também a dos pescadores e da sardinha. A época da sua pesca iniciou-se dia 2 de Maio e a partir de agora é a indiscutível rainha das grelhas da cidade. Fora da tradição da sardinha assada nestas festas ficam as caldeiradas de pescador, “feitas com os peixes que se iam juntando no barco”, de pouca cotação no mercado — a cavala, o biqueirão. “Para o barco levavam-se umas batatinhas, azeite, tomate, e juntava-se tudo”, recorda Agostinho frisando que nunca foi comida de festa, mas antes para remediar o estômago. De vez em quando, ainda se come nas casas das famílias de pescadores.
A devoção ao Senhor de Matosinhos não é, entre os pescadores, tão forte como a que têm ao Mártir São Sebastião, seu padroeiro. Este santo também merece festas — acontecem por três dias em Julho — e é nesta altura que a procissão passa pela lota e pela praia, onde se faz um fogo de bênção ao mar. No entanto, a ligação dos pescadores ao Bom Jesus de Matosinhos fortalece-se a 1 de Novembro, quando se acendem velas em memória dos pescadores mortos, em torno do monumento que assinala a descoberta da imagem sagrada.
Uma lenda que move a cidade
A história que dá fundamento à festa tem poucos alicerces históricos, mas emocionou populações durante séculos. A imagem do Senhor de Matosinhos é, segundo esta lenda, uma das esculturas que São Nicodemos fez de Jesus Cristo na cruz. São Nicodemos quis, depois de presenciar de perto a morte de Cristo, retratá-lo em tamanho real, tentando reproduzir a expressão que tinha visto no rosto de Jesus Cristo. Passou a vida a tentar pôr na madeira aquela emoção, mas todas as quatro imagens que produziu falharam o objectivo e foram sendo sucessivamente deitadas ao mar por Nicodemos, na Palestina. Uma navegou até à Síria, outra a Itália, a terceira foi até à Galiza e a quarta — que defendem os matosinhenses, foi a primeira a ser esculpida — veio parar, sem um braço, à praia do Espinheiro no ano 124 d.C.
A imagem ficou por séculos guardada no mosteiro de Bouças e, por isso, este era até ao século XVI, o Bom Jesus de Bouças. Nesse século foi edificada a Igreja do Bom Jesus de Matosinhos, com excessivo uso da talha dourada, bem ao gosto do barroco português. Aí, o Senhor passou a ser de Matosinhos e iniciou as celebrações de Maio que, para a comunidade católica, se sobrepuseram completamente às festas do Espírito Santo, no mesmo domingo. Por isto, este feriado municipal é móvel, 52 dias depois do domingo de Páscoa.
As análises dos factos já desmentiram a data da descoberta da imagem. No livro Senhor de Matosinhos. Lenda. História. Património, o historiador Joel Cleto aponta a origem da imagem para os séculos XII ou XIII. Mas voltemos à lenda que motiva a romaria, as promessas e os festejos. Conta-se que a imagem terá ficado 50 anos sem o braço que lhe faltava. Os carpinteiros locais tentavam emendá-la o melhor que sabiam, mas nenhum braço lhe servia. Foi uma mulher que encontrou o membro em falta na praia e o levou para casa, com o propósito de usá-lo para alimentar o lume, sem reconhecer os traços artísticos de São Nicodemos. Quando tentava queimá-lo, ele saltava para fora da lareira e foi a filha muda que lhe disse, falando pela primeira vez: aquele era o braço do Senhor de Bouças. Encaixou na perfeição.
Texto alterado às 13h14 de 8 de Maio de 2024, para corrigir uma gralha no parágrafo sobre o fogo dos bonecos.