Igualdade e IRS

Não pode ser justo um sistema que isenta 50% da população e que coloca 5% dos cidadãos a pagar a parte de leão da receita do IRS.

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No passado dia 29 de Abril, o PÚBLICO anunciava em artigo de grande destaque que “Novo corte de IRS arrisca-se a aumentar outra vez a desigualdade”. Tal artigo tem como pressuposto que o IRS, imposto progressivo, contribui para a diminuição das desigualdades (o que é um truísmo). Da sua leitura resulta que a redução deste imposto é um passo atrás no caminho para a igualdade.

Ora, para quem entende que o IRS, e os tributos em geral, são um instrumento de engenharia social que visa a igualdade económica entre os cidadãos, a conclusão é correcta. Contudo, a esta perspectiva do fenómeno tributário subjaz um viés ideológico, que (felizmente!) não é sancionado pela nossa Constituição (CRP).

Para que servem os impostos? De acordo com o art. 103/1 da CRP: O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza.

Daqui retiramos num relance que, para o legislador constitucional, a primeira função dos tributos é a satisfação das necessidades financeiras do Estado. Como afirmou Oliver Wendell Holmes Jr. (Juiz do Supremo Tribunal dos Estados Unidos entre 1902 e 1932) taxes are the “price we pay for a civilized society”. Ou, noutra versão mais coloquial: “I like to pay taxes. With them, I buy civilization.”

Mas tal tem como contrapartida algo que é o pilar de qualquer sistema fiscal justo e adequado: a moderação do poder tributário pelo princípio da capacidade contributiva, i.e., os cidadãos só podem ser chamados a pagar os impostos que podem suportar na medida da respectiva capacidade económica, o que afasta a possibilidade de confisco.

Por outro lado, a repartição justa dos rendimentos e da riqueza, sendo também um objectivo do sistema fiscal, é função subordinada. O que se pretende não é a igualdade económica entre os cidadãos, mas sim que os rendimentos e riqueza sejam distribuídos de forma justa.

É certo que, de acordo com o art. 104/1 da CRP, o imposto pessoal sobre o rendimento visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo; mas tal não permite a violação do princípio da capacidade contributiva, pois só o seu respeito resultará na igualdade material do esforço fiscal. Outra coisa redundaria na legitimação do confisco e numa ofensa ao Estado de Direito.

Dito isto, será que o nosso IRS está conforme com estes princípios constitucionais?

Portugal é um país pobre com uma população pobre – quase 50% dos agregados não pagam IRS por não terem rendimento suficiente para tal. Por outro lado, embora seja certo que poucos são os que pagam taxas efectivas na casa dos 45%, são estes – os 5% mais ricos – que suportam 48% da receita total de IRS. Mas estes 5% são agregados com rendimentos brutos médios na casa dos €40.000/ano, ou seja, para o IRS já são ricos aqueles que auferem cerca de €3000/mês.

Não é, não pode ser justo um sistema que isenta 50% da população e que coloca 5% dos cidadãos a pagar a parte de leão da receita do IRS. Há claramente um excesso de esforço fiscal colocado nesta reduzida camada de cidadãos, que vêm amputada uma enorme parcela do seu rendimento disponível em comparação com os demais. Dir-me-ão: mas tem de ser assim, porque somos um país de pobres, pelo que os remediados têm de pagar por eles. Direi eu: nada a opor, desde que o que é tributado seja justo e adequado do ponto de vista da justiça material. Não é!

Desde logo, porque nem o legislador assim o entendeu quando criou o IRS. As taxas nem são o problema: são os escalões, hoje em número excessivo e de valor muito baixo. Note-se que ainda vivemos o “enorme aumento de impostos” do Prof. Vítor Gaspar (V.G.), justificado então pela situação de pré-bancarrota. Atente-se tão-só na situação do último escalão:

Antes V.G.

Hoje

Rendimento

Taxa Máxima

Rendimento

Taxa Máxima

€ 150.000

48%

€ 81.199

48%

Sucede que a emergência financeira já lá vai há uma década, e continuamos em emergência fiscal.

Por outro lado, quem tanto paga nem sequer são os mais ricos: as taxas progressivas só se aplicam, essencialmente, aos rendimentos de trabalho e pensões, enquanto os rendimentos de capitais e mais-valias suportam, por regra, uma flat rate de 28%. Ora, onde está a justiça quando quem trabalha paga mais 20% do que quem vive de rendimentos? Isto nem serve a perspectiva igualitarista, pois o verdadeiro efeito redistributivo não é entre ricos e pobres, mas entre trabalhadores/pensionistas e pobres.

Acresce que as características personalizantes do imposto (deduções e abatimentos) foram desaparecendo. As deduções ao rendimento foram sendo substituídas por deduções à colecta, sendo estas últimas menos personalizantes (baixas e, na prática, desligadas do valor efectivo das despesas) e muito limitadas.

Há, pois, pelo menos duas perspectivas ao olhar para esta deplorável realidade:

  1. A perspectiva adoptada pelo artigo, para a qual está tudo jóia, pois o IRS serve para acabar com as desigualdades;
  2. E a de quem vê na actual situação do IRS um tributo desequilibrado e injusto.

Tenho, aliás, uma sugestão para quem pensa que o IRS serve sobretudo (ou apenas) para acabar com as desigualdades: substituir o Código do IRS por uma lei com apenas três artigos. Assim:

Artigo 1.º
O IRS incide sobre todo o rendimento auferido por um residente em Portugal.

Artigo 2.º
A taxa de IRS é de 100%.

Artigo 3.º
Ficam isentas de IRS as pessoas cujo rendimento seja inferior a 14x o salário mínimo nacional.

Mais igualdade que isto não me parece possível. Incrivelmente, há quem a almeje.

Já para quem pensa que o IRS serve para suprir as necessidades financeiras do Estado no respeito pelo princípio da capacidade contributiva, e subsidiariamente para a diminuição das desigualdades económico-sociais, a solução será seguramente mais complexa, envolvendo todo o sistema fiscal e escolhas difíceis ao nível da despesa pública, e/ou da prioridade a dar às diferentes funções do Estado. Para quem, como eu, gosta de pagar impostos, ficar de braços cruzados não é solução.

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