Entrar no 1.º ciclo... Quando?

Adiar a entrada no 1.º ciclo pode proteger as crianças contra distúrbios do desenvolvimento.

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"É crucial prepararmos os nossos filhos para serem pensadores independentes" Nelson Garrido/Aqruivo
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Vivemos numa sociedade apressada, sempre em busca de mais rapidez, mais capacidade, mais produtividade, e parece que estamos a perder de vista a essência fundamental: a infância e o seu desenvolvimento.

No entanto, essa corrida desenfreada pode ter um custo elevado: priva as crianças do tempo necessário para crescer, explorar, desenvolver habilidades de autorregulação e concentração, amadurecer e, acima de tudo, brincar. Não devemos nem podemos apressar o desenvolvimento, os danos de tentar fazê-lo a todo o custo são evidentes.

Nos últimos anos, a preocupação geral tem sido sobre que competências devemos ensinar aos nossos filhos desde cedo, tal como a programação, mas estamos a esquecer-nos de questionar se o devemos fazer. As crianças precisam de brincar… Se não amadurecem cedo demais, e tal como dizia um psicanalista "fruta bicada por um pássaro ainda na árvore, amadurece antes do tempo". E assim muitas crianças são forçadas a amadurecer emocionalmente antes do tempo.

Vamos aos factos: São muitos os trabalhos científicos que têm trazido a debate esta questão de adiar a entrada na escola no 1.º ciclo, ou seja, adiar o início da aprendizagem formal. Alguns apontam para benefícios à saúde mental das crianças, permitindo-lhes autorregular melhor os seus níveis de atenção e hiperatividade quando iniciam a escola.

Este efeito foi observado ao longo do tempo, praticamente eliminando a probabilidade de uma criança de 11 anos ter critérios comportamentais compatíveis com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). De acordo com outra investigação que envolveu mais de 300.000 crianças em idade escolar, concluiu que as crianças que completaram 6 anos em dezembro e começaram a escola nesse ano tinham aproximadamente duas vezes mais probabilidade de receber medicação para TDAH. Uma investigação no Canadá, envolvendo quase um milhão de crianças, descobriu que os meninos mais novos tinham 30% mais probabilidade de serem diagnosticados com TDAH e 41% mais probabilidade de serem medicados.

Outros estudos também compararam crianças que iniciaram a escolaridade aos 6 anos com aquelas que começaram aos 7. Sendo que estas ultimas apresentaram melhores capacidades socioemocionais, como empatia, autocontrole e resolução de conflitos, em comparação com aquelas que começaram aos 6 anos.

De acordo com os resultados de outro estudo baseado na mesma comparação étaria, mas focado no desempenho cognitivo, as crianças que iniciaram a escolaridade aos 7 anos apresentaram melhor desempenho em testes de leitura, matemática e linguagem do que as que começaram aos 6 anos.

Além destes, um estudo longitudinal acompanhou crianças desde o nascimento até aos 15 anos. A pesquisa revelou que crianças que tiveram mais tempo para brincar na pré-escola apresentam melhores habilidades de autorregulação e concentração na adolescência. Outro estudo investigou o desenvolvimento cerebral de crianças entre os 4 e os 11 anos. Os resultados mostraram que algumas áreas do cérebro, como as relacionadas com a inibição de impulsos e controlo emocional ainda estavam em desenvolvimento até os 7 anos.

Com o aumento de diagnósticos de ansiedade, TDAH, depressão, perturbações sensoriais a disparar precisamos de reflectir, Será que por vezes algumas destas crianças estão a ser mal diagnosticadas com base em observações que são apenas sinais de imaturidade normal relacionada com a idade? Porque efetivamente é esta a hipótese que os investigadores colocam.

Se pensarmos em crianças de 6 anos, sabemos que elas saltam, pulam, correm, falam alto, são impulsivas mexem-se muito, interrompem-nos a todo o momento, parece que não têm paciência... Mas isto tudo faz parte do desenvolvimento normal! É inclusive crucial para o saudável desenvolvimento cerebral cognitivo mas acima de tudo socioemocional.

O movimento associado ao brincar é um fator insubstituível neste desenvolvimento. As crianças pequenas, pelo menos até aos 7 anos, precisam de passar a maior parte do tempo a brincar. Porque isso vai contribuir para a maturação de certas estruturas cerebrais necessárias à aprendizagem formal. Desde bebé, durante o tempo de brincadeira, ocorrem processos invisíveis aos nossos olhos de desenvolvimento cerebral, e este trabalho de integração de todas as áreas cerebrais é crítico para o desenvolvimento das funções executivas.

Até que este processo esteja completo, a criança permanecerá naturalmente imatura e impulsiva, pois vai além da capacidade do seu cérebro.

Então, quando é que uma criança está pronta para iniciar a educação formal? A resposta não é única, porque mais do que a idade, essa prontidão depende do desenvolvimento cerebral.

Uma investigação que examinou a eficácia de iniciar a educação formal aos 7 anos na Dinamarca e nos EUA, descobriu que isso reduziu drasticamente o número de alunos que apresentavam problemas de atenção e hiperatividade. No entanto, a nossa sociedade orientada para os resultados está a pressionar-nos a exigir competências de ensino em idades cada vez mais jovens, embora não haja provas que sugiram que a leitura aos 5 anos conduza a um maior sucesso académico.

Na verdade, o oposto pode ser verdadeiro: forçar uma criança a ler antes que ela esteja preparada para o desenvolvimento pode criar stress, inibir a aprendizagem e levar a sentimentos de inadequação, ansiedade e confusão. Embora muitos pais e educadores vejam o ingresso precoce na escola como algo positivo, acreditando que a criança está "muito desenvolvida para a idade", é crucial considerar que o desenvolvimento vai além da parte cognitiva.

É verdade que as crianças de hoje têm acesso a mais informação e estímulos. No entanto, isso não significa que suas estruturas cerebrais estejam maduras o suficiente para lidar com as exigências da educação formal. Pressionar as crianças pode acarretar consequências negativas a longo prazo.

Por outras palavras, num mundo em constante transformação, é crucial prepararmos os nossos filhos para serem pensadores independentes, capazes de definir os seus próprios caminhos e lidar com a incerteza do futuro. Direcioná-los para um sistema que enfatiza a conformidade, a memorização e o sucesso em testes pode, apesar das boas intenções, prejudicá-los mais do que beneficiá-los.

A infância é uma fase única e irrepetível na vida. É nosso dever garantir que as crianças tenham a oportunidade de aproveitar esse tempo ao máximo, para que possam desenvolver-se plenamente e alcançar todo o seu potencial. A infância não é opcional!


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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