Marcelo sem filtros

Ao final, os jornalistas perguntavam entre si o que pretendeu o líder português em se expor tanto e abrir frentes de batalha. O tempo dirá.

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Eram 19h30 em ponto, quando o carro, uma Mercedes um tanto gasta, parou em frente ao elegante Hotel Vila Galé Ópera. A conduzir o veículo, o próprio Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, acompanhado de sua ajudante de ordens e fiel escudeira. Dois seguranças na porta do estabelecimento garantiam que o chefe poderia descer tranquilo para o jantar que havia agendado, havia poucos dias, com jornalistas estrangeiros que vivem em Portugal. Marcelo desceu sorridente do automóvel, sorridente e muito à vontade para falar.

Tão logo chegou ao salão alugado pela Presidência da República, deixou claro que não haveria muitas reservas na conversa com os correspondentes. Depois dos cumprimentos, dos beijos, dos abraços e dos apertos de mãos, acomodou-se à mesa ladeado por mais de 30 pessoas. Pegou o microfone, agradeceu a presença de todos e pediu a primeira pergunta. Com uma taça de vinho tinto e saboreando um pedaço de pão preto molhado no azeite, não titubeou em responder a primeira pergunta: “Como via Portugal 50 anos depois da Revolução dos Cravos e qual o perigo para a democracia ante o avanço da extrema-direita no país?”.

Foram quase 50 minutos de resposta para esta questão, em que traçou um paralelo entre Portugal do passado e o país que optou por dar 50 assentos na Assembleia da República à direita radical. O recado final do presidente foi claro: ou os dois principais partidos políticos, o PS e o PSD, se renovam e voltam a falar com as massas, ou os populistas da direita radical ocuparão definitivamente esse espaço, como ocorreu em outros países da Europa. O prato de entrada, um creme de grão-de-bico, foi saboreado com avidez. Mas em nada atrapalhava as divagações de Marcelo. Vários assuntos foram se sucedendo, sem que o presidente se preocupasse em pedir o tal off, quando a informação deve ficar apenas com o ouvinte. Isso aconteceu, no máximo, cinco vezes, em tema mais delicados.

As mais de quatro horas de conversa, que teve como prato principal um naco de carne com batatas gratinadas, foram uma espécie de catarse por parte do presidente. Ele expôs todo o seu descontentamento e espanto em relação ao jeitão “rural” (caipira, no Brasil) do primeiro-ministro, Luís Montenegro. Tentou mostrar muita proximidade com o ex-primeiro-ministro António Costa, a quem chamou de “oriental e lento”, para, talvez, tirar o peso de ter dissolvido o parlamento e convocado eleições. E, para espanto dos presentes, antes mesmo que pudesse ser questionado pelos jornalistas, levantou a questão sobre as gêmeas brasileiras, que lhe rendeu um processo que está sendo conduzido pelo Ministério Público, por suspeitas de favorecimento às meninas em um tratamento de saúde.

O presidente expôs todo o descontentamento com o filho, Nuno, com o qual rompeu desde então, depois de sucessivos desapontamentos. Ele ainda tem um ano e meio de mandato pela frente, contudo, parece ter dado início a um processo de prestação de contas, sem filtros. Ao final, os jornalistas perguntavam entre si o que pretendeu o líder português em se expor tanto e abrir frentes de batalha. O tempo dirá. Porém, um sinal evidente foi o de tentar recuperar a popularidade perdida. Marcelo ainda acredita que pode deixar o Palácio de Belém nos braços do povo. “Já estou com quase 60% de aprovação”, enfatizou. O presidente definiu sua prioridade: ele, ainda que isso lhe custe muitos desafetos no meio político.

O autor é correspondente do Correio Braziliense em Portugal

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