Mário Cruz fotografou a crise da habitação para “exigir” que se cumpra Abril

No projecto Roof – exposição e livro –, o fotógrafo mostra “o lado escondido da crise de habitação”. “Se a Constituição garante habitação digna para todos, se calhar é tempo de cumprir”, diz.

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A exposição Roof, com entrada livre, será inaugurada no dia 27, às 15h, e ficará patente até 9 de Junho. Mário Cruz / Facebook (Narrativa)
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Mário Cruz fotografou edifícios devolutos que "há demasiado tempo" servem de abrigo a pessoas em Lisboa e vai expor o resultado para, nos 50 anos da revolução que derrubou a ditadura, "exigir" que se cumpra Abril. Roof é o nome do novo projecto (exposição e livro) do fotojornalista, que teve como mote o direito a uma habitação digna, inscrito na Constituição. Nos últimos dez anos, Mário fotografou com regularidade prédios, fábricas, escolas que têm em comum o facto de estarem devolutos.

O fotógrafo, distinguido com dois World Press Photo, quis revelar "o lado escondido da crise de habitação" e exigir a resolução do problema. "Se a Constituição garante habitação digna para todos, se calhar é tempo de cumprir. E o 25 de Abril deveria obrigar a esse cumprimento", considera.

A pedido da Lusa, Mário Cruz escolheu três pontos no seu mapa alternativo da cidade, "muito diferente" do que orienta os turistas.

A primeira paragem faz-se num local "simbólico" de como "o Estado falha todos os dias": em frente ao Palácio de Belém, Mário Cruz lembra que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, assumiu o desígnio de "terminar com os sem-abrigo na cidade". Acontece que, nas costas da sua residência oficial, "há pessoas que não têm um sítio para viver" e ocupam edifícios devolutos, lado a lado com condomínios privados.

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O fotojornalista Mário Cruz já venceu duas vezes o prémio World Press Photo. Rui Gaudêncio

"Trabalham, mas não conseguem de forma alguma pagar a renda de uma casa ou comprar uma casa", descreve, realçando: "Estas pessoas são sem-abrigo, simplesmente não as vemos nas ruas."

A segunda etapa transporta-nos para a zona de Chelas, onde um caminho de terra ladeado por flores coloridas desemboca numa quinta do século XVIII. A roupa estendida faz prova de vida no edifício entaipado, cujo muro esboroou tanto desde que Mário o fotografou, em Abril de 2014, que até a placa onde se lia "Câmara Municipal de Lisboa" caiu.

Nessa altura, com 63 anos, o "senhor Gomes" – rosto do cartaz da exposição perdera o emprego e encontrara ali um "tecto improvisado [...] permanentemente em risco de colapsar", ao qual acedia através de um escadote.

“​As pessoas tentam transformar estes sítios em verdadeiras casas

Mário distingue três momentos na década que fotografou: a crise financeira de 2013/2014, que se pensava temporária, a esperança da retoma em 2019/2020 e o "ponto de ruptura" actual. "Voltei a alguns dos sítios em 2023 e as pessoas permanecem [...], porque têm uma dificuldade tremenda em arrendar uma casa na capital portuguesa", constata.

Não longe dali, em Marvila, uma escola industrial do Estado Novo serve de abrigo a dezenas de pessoas. As dimensões do edifício, com capacidade para 850 alunos, são impressionantes. Sobre vidros e telhas partidas, percorrem-se as alas que albergaram cursos profissionais de mecânica, electrónica e outros.

A escola, desactivada em 2010 para deixar passar a Terceira Travessia do Tejo (ainda por fazer), continua de pé, ainda que em avançado estado de degradação, mas soube-se este mês que a demolição vai mesmo para a frente.

Actualmente, vivem ali, há mais ou menos tempo, "trabalhadores comuns, pensionistas, [...] alguns imigrantes", descreve Mário, que destaca o simbolismo de se chegar aos 50 anos da Revolução e haver "uma escola ainda do tempo do Estado Novo a albergar filhos do 25 de Abril".

Oriundo de Cabo Verde, João, de 59 anos, chegou a viver na rua antes de, há quatro anos, se instalar na antiga escola, onde diz que encontrou um "bom ambiente". Na ala onde está vivem "umas 15 pessoas" e cada uma tem o seu fogão, numa cozinha improvisada, que dá "para fazer pitéu". Para o resto, João tem de ir "no meio do mato" e recorrer aos balneários públicos. "A vida tramou-me", lamenta João, nos minutos de conversa com a Lusa, cuja presença atraiu a polícia, que faz por ali rondas regulares.

A última etapa do percurso é o Antigo Recolhimento das Merceeiras, edifício no coração de Lisboa que a Santa Casa da Misericórdia cedeu para expor Roof, que será inaugurada no dia 27 de Abril, às 15h, e ficará patente até 9 de Junho, com entrada livre.

Situado na zona da Sé, onde são visíveis os contrastes entre apartamentos sobrelotados com migrantes e os tuk-tuks que serpenteiam o destino turístico número um da Europa, o edifício permitiu a Mário conceber uma exposição imersiva, que vai transportar os visitantes para o ambiente dos locais fotografados.

"Quem visitar esta exposição terá de realmente procurar as fotografias, da mesma forma que muitas vezes eu procurava as pessoas nestes locais e vai ter de entrar em diferentes casas e em cada casa vai ver uma peça de toda esta história", explica.

Simultaneamente, o fotógrafo pretende mostrar que "é muito fácil cair" nesta dura realidade. "Basta não ter o apoio familiar que se calhar muitos de nós temos, basta perder um emprego, basta o contrato de arrendamento não ser renovado e facilmente caímos numa situação de ter de encontrar um tecto improvisado."