Sósias da liberdade (ou: sim, a direita também celebra o 25 de Abril)
Entre certos sectores que se julgam tutores do 25 de Abril, há quem limite a legitimidade das celebrações às diversas esquerdas presentes na paisagem política.
Comemorar os 50 anos do 25 de Abril. Uma liturgia de liberdade: é por a liberdade ser perenemente frágil que ela deve ser celebrada; é por vermos esbracejarem fantasmas frescos que a podem hipotecar, num retrocesso que agita pesadelos, que festejamos a liberdade; é por causa dos 48 anos amordaçados que a conquista da liberdade não pode cair no esquecimento. Celebramos a liberdade porque é um mito que cimenta a pertença a uma comunidade de valores políticos. Celebramos a liberdade porque a prezamos como esteio da comunidade política e porque temos medo do seu contrário. A emergência de forças populistas que ameaçam sequestrar a liberdade (se é que já não a sequestraram em parte) reforça o desejo de comemorar o 25 de Abril.
Ser pela liberdade também é ser contra o maniqueísmo. A liberdade é multidimensional. Há a liberdade política, a liberdade de pensamento, a liberdade de expressão, a liberdade para discordar. Que fique bem entendido: defenda-se a afirmação de ideias e a exposição de posições sobre um determinado assunto, mesmo que consideremos que não são defensáveis ou que distorcem a (nossa) validação dos factos. Esta advertência serve para não excluir nenhuma – insisto: nenhuma – opinião, posição e ideia sobre a interpretação da revolução de 1974, de quem a tutela e quem tem legitimidade para a celebrar.
Ser pela liberdade é também ter o direito de discordar de opiniões diferentes das nossas sem ser enjeitado pelo exercício do direito à diferença. Entre certos sectores que se julgam tutores do 25 de Abril, há quem limite a legitimidade das celebrações às diversas esquerdas presentes na paisagem política. Sobressai a tentação de acantonar “a direita” (como se a direita fosse homogénea) na desconfiança perante as conquistas de Abril. Se não o afirmam declaradamente, deixam-no nas entrelinhas: “a direita”, ou não gosta do 25 de Abril e tem saudades do Estado Novo (ou do fascismo), ou materializa dúvidas metódicas sobre a democracia inaugurada naquela data.
No PÚBLICO de 17 de abril, Manuel Loff perdeu o pudor ao asseverar que “por mais que tentem descafeinar a Revolução, as direitas deste país não têm motivos para querer comemorá-la. A memória da Revolução continua a irritá-las sobremaneira.” O protagonismo da extrema-direita poderá explicar a afirmação inflamada de Loff, não se soubessem de outras trovas em que o historiador é pródigo. A generalização, como todas as generalizações, contém o seu autojulgamento.
A direita não gosta do 25 de Abril?
Logo a seguir, Loff inventaria corretamente os benefícios da revolução. Mas depois conclui que, desde Sá Carneiro a Cavaco, “as direitas continuam a detestar o 25 de Abril”. Por isso, “as direitas” (louve-se o esforço em atualizar do singular para o plural) não festejam a revolução democrática. A pluralização foi contraproducente: as direitas, sem exceção, odeiam o 25 de Abril.
Não quero ser porta-voz das “direitas”. Sendo de direita e tendo nascido poucos anos antes da revolução de Abril, considero as posições de algumas esquerdas a la Loff ultrajantes. Quem encosta “as direitas”, sem distinção de pergaminhos, às cordas do antidemocrático, medra na indigência e no sectarismo. Argumentar que “as direitas continuam a detestar o 25 de Abril” é de uma gravidade que exige reparo. Primeiro, quem assim se posiciona mantém que o património genético do 25 de Abril não quadra com as diversas linhagens das direitas. Parece que os partidos de direita não são bem-vindos na casa democrática inaugurada pelo 25 de Abril. Se fosse possível interrogar diretamente Loff e afins, defenderiam que os partidos que não são de esquerda deviam ser impedidos de concorrer a eleições? Pois se esses partidos detestam – continuam a detestar – a revolução de Abril, e se a revolução é o epítome de democracia, logo são antidemocráticos. O esclarecimento ajudava a perceber o resto.
Segundo, esta posição é uma afronta a quase cinquenta anos de democracia. Há partidos de direita com responsabilidade na governação durante a era democrática. Aliás, Loff já defendeu que os próprios governos do PS (com exceção do que teve a curadoria da "geringonça") não se distinguem dos governos liderados pelo PSD por governarem de acordo com as exigências do neoliberalismo. Eis a interrogação: temos vivido em democracia tutelar, semidemocracia, democracia sequestrada, ou em “democracia de baixa intensidade”?
Afinal, a direita não gosta da democracia, ou não gosta apenas (e este apenas é uma enormidade) da revolução do 25 de Abril?
O 25 de Abril esgotou-se no dia 25 de abril?
Dirão os mais céticos, sobressaltados pelo pesadelo do “fascismo” latente, que estes são tempos de assalto à democracia. Concordo com a exclamação de Loff: “Nos tempos que correm, poucas festas podem ter mais sentido prático!” Usando o mesmo método inquisitivo, essa é uma interrogação que deviam dirigir às personagens que sobem ao palco daqueles pesadelos: “é sua intenção des-democratizar?” Devíamos ouvir a resposta das suas bocas, para o tira-teimas.
A liberdade intrínseca das democracias liberais funda-se no respeito escrupuloso por um conjunto de valores políticos. A liberdade de pensamento e de expressão integram esse catálogo. Honra seja feita à democracia liberal que continua a dar palco à manifestação de posições que não correspondem à mitologia política adquirida. Honra lhe seja prestada, para que Loff e outros que tais continuem a ter direito a dar à estampa estas posições heterodoxas. Digo-o sem que o(a) leitor(a) apure segundas intenções nas minhas palavras, ou tente adivinhar nas entrelinhas: digo-o com a convicção de quem está nos antípodas de Loff & Cia, mas os lê com mais interesse do que autores que possam convergir com as suas ideias e posições.
O exercício significativo é imaginar o que teria sido a experiência da democracia se ela tivesse seguido a grelha de Loff & Cia. Não se diga deste exercício que é contrafactual. Não estaríamos a celebrar 50 anos de democracia no 25 de abril de 2024; estaríamos a celebrar, num qualquer dia radioso de novembro, os 35 anos de democracia, após a queda do regime político.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico