“Digam lá o que disserem, os bivalves da ria de Aveiro são os mais saborosos”
Na laguna aveirense apanha-se mais de 80% do total de berbigão capturado em Portugal. Daqui também sai lingueirão, mexilhão, amêijoa e ostra. Ílhavo está a promover um festival que os celebra.
A água está tão parada que o pequeno Soraia mais parece estar a deslizar. Não há ponta de vento e, como o sol brilha com todo o seu esplendor, a ria de Aveiro vive uma manhã propícia a passear nos seus canais. Àquela hora, o canal de Mira exibe, entre as praias da Barra e da Costa Nova, em Ílhavo, uma longa extensão de baixios – mais longa ainda do que é habitual, uma vez que é tempo de marés vivas –, contornados por umas quantas embarcações de pesca artesanal, idênticas ao Soraia. Há homens (e mulheres) que se mantêm dentro dos barcos a movimentar uma vara, outros caminham em zonas poucas profundas, e também há quem permaneça, curvado, nas zonas com areia.
“A apanha de bivalves pode ser feita de forma apeada ou embarcada”, explica João Paulo Lopes, presidente da APARA – Associação de Pesca Artesanal da Região de Aveiro, ao mesmo tempo que manobra o barco que nos há-de levar ao encontro de alguns mariscadores, a fim de tomarmos contacto com uma pequena amostra do que é a realidade da laguna aveirense. Há cerca de um milhar licenciados para pescar na ria de Aveiro e manter esta actividade artesanal que tem passado de geração em geração.
Que o diga o próprio presidente da APARA, que, nos seus 56 anos de vida, já leva com 50 de ria de Aveiro. “A partir do momento em que fui para a escola primária, comecei logo a ajudar o meu pai”, testemunha. Tem duas filhas, uma neta e um neto e, ainda que o “pequenito” goste de passear no barco, não o quer influenciar em nada. “Se algum dia se virar para isto, que seja por vontade dele.” Foi o que aconteceu ao filho de Miguel Esgueirão, um dos mariscadores que andavam, naquela manhã, ao berbigão e à amêijoa. “Tirou o 12.º ano, fez curso de electricista e quer andar aqui”, contava o mariscador, de 49 anos, também ele filho de um homem da ria. Uns metros à frente, estavam os seus dois "João Francisco". O filho e o barco. “Não me imagino fechado. Gosto deste contacto com a natureza”, argumentou o jovem de 21 anos quando lhe perguntámos por que razão não tinha enveredado pela sua área de estudo.
João Francisco e o pai estavam a apanhar berbigão e amêijoa-macha com uma “cabrita espanhola”. Assim se chama o utensílio, uma espécie de ancinho fixado a uma vara de madeira, que vão arrastando no fundo da ria para apanhar os bivalves. “Existe a cabrita normal e a espanhola. A grelha da espanhola permite que tudo o que é mais pequeno fique no fundo”, explica João Paulo Lopes. Poupa-se trabalho ao mariscador a crivar os bivalves capturados – devolvendo os mais pequenos à água – e reforça-se o cuidado com a preservação das espécies. Na pesca apeada, os mariscadores usam um ancinho para ir “lavrando” a lama, numa jornada que “dá cabo das costas”, admitia Vítor Fidalgo, que já andava curvado, na ria, há quase duas horas. Ele a mulher, Adília Fidalgo. Ainda assim, este casal da Costa Nova garante gostar muito daquilo que faz. “Gosto de andar ao ar livre”, testemunhava Adília, de 62 anos. É dois anos mais velha do que o marido, mas os ares da ria e a lama, brinca, ajudam a atenuar os efeitos da idade.
Produto de qualidade
Carlos Matias era outro dos mariscadores que, naquela manhã, cumpriam mais uma jornada de trabalho no canal de Mira. Aos 64 anos, este pescador da Gafanha da Nazaré já não se preocupa tanto com a quantidade de bivalves apanhada, mas sim com a qualidade. A bordo do seu Lobo do Mar ia manuseando a “cabrita” – no seu caso, normal – e crivando os bivalves, com toda a calma. “O que importa é que dê para a sopa”, atirava aquele que foi, contou-nos depois João Paulo Lopes, o primeiro presidente da APARA. A associação tem como propósito defender os interesses dos pescadores, começando, desde logo, por defender o cumprimento da lei. Segundo refere o presidente da colectividade, que conta com quase 600 associados, a manutenção de algumas práticas ilegais acaba por prejudicar todos os pescadores. “Neste momento, por exemplo, há malta que está a apanhar amêijoa-macha e a facturá-la como berbigão, ou seja, a preços muito baixos”, lamenta – com esta prática, contornam-se os limites de captura diária de cada espécie.
Deprecia-se o trabalho de quem cumpre as regras, mas também se desvaloriza o produto, na certeza de que os bivalves da ria de Aveiro “têm um sabor diferente”. “Digam lá o que disserem, os nossos são os mais saborosos”, defende o presidente da APARA, servindo-se do exemplo da amêijoa-boa. “Têm outro sabor e até o tamanho é diferente”, vinca, sem esquecer o berbigão, o lingueirão, o mexilhão e a ostra de “qualidade ímpar”. “Grande parte dos bivalves que chegam a Espanha vai daqui da nossa ria”, atesta.
Não é preciso olhar para o outro lado da fronteira para perceber a importância que os bivalves da laguna aveirense já conquistaram. Em 2022, os berbigões da ria de Aveiro – que localmente são chamados “cricos” – representaram mais de 80% da quantidade total capturada em Portugal. Nesse mesmo ano, o choco da ria representou 37% do total nacional, o mexilhão, 27%, e a amêijoa, 24%. Números divulgados, recentemente, pelo município de Ílhavo, que decidiu criar um festival (ver caixa) para valorizar estes produtos da ria. Afinal de contas, e tendo por base dados do Instituto Nacional de Estatística para a lota de Aveiro, a captura de bivalves e a pesca do choco da ria representaram mais de oito milhões de euros para a economia da ria de Aveiro em 2022.