A carta que não tive de escrever à minha filha

A propósito da carta de João Taborda da Gama à filha que votou no Chega. Aviso, para ajudar o leitor a não tresler esta não-carta: este texto não é um artigo de opinião a favor do Chega.

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Sabes? O ódio não é de agora. Nem o dogmatismo. Nem a incultura que fermenta posições que agridem a nossa sensibilidade. Nem a ignorância e o desconhecimento da História, ou a falsificação do presente. Também não é de agora o ressentimento que motiva eleitores. A deriva antidemocrática, com altos e baixos, não é novidade. Nem as fraturas intergeracionais: quando convém, os mais velhos desprezam os mais novos, colando-os à frivolidade, à inexperiência e à soberba de quem ainda não saiu da exiguidade dos seus quadros mentais e, todavia, despreza os mais velhos, considerando-os fora de prazo.

Sabes? Muitos andam entretidos a (tentar) explicar o sucesso do Chega na última eleição (irá a caminho de ser um epifenómeno, para fazer a vontade a uma imensa maioria?). Dá-se por certa a migração de muitos abstencionistas para o Chega. Jovens e menos jovens certificam, por conhecimento próprio, que muitos jovens votaram no Chega, muitos deles na primeira vez que puderam votar. Poucos levantam a hipótese de ter havido uma transferência maciça de votos do PS para o Chega, talvez por ser uma hipótese que incomoda muita gente bem pensante. Para o caso que trato nesta não-carta, essa hipótese não interessa.

E sabes? Já ouvi dizer, em conversas entre gente conhecida, com o beneplácito de estarmos apenas em amena cavaqueira, que era preferível que os eleitores que se transferiram da abstenção para o Chega continuassem a contribuir para a crise do regime através da abstenção elevada; ou a insinuar que era melhor que os jovens seduzidos pelo partido de extrema-direita não tivessem ido votar.

Sabes? É da experiência da vida: a eterna insatisfação impede-nos de concluir a aprendizagem sobre a imperfeição das construções humanas. É assim com o voto, com qualquer eleição. Ninguém fica inteiramente satisfeito. Daí à intensa insatisfação que deu à costa (não é trocadilho…) a 10 de março, aos cenários apocalípticos, a que se juntam outros risíveis (com a curadoria de Rui Tavares), vai a distância da perplexidade. Afinal, a abstenção é melhor do que um voto num partido – eis a nova doutrina que emerge no restolho das eleições, perfumada pela desorientação (prefiro tratá-la desta forma, em vez de remeter para o lugar das reações profundamente antidemocráticas). Afinal, os jovens – isto é seletivo: alguns jovens – não deviam ter atingido a maioridade para não exibirem a sua tremenda falta de sensatez eleitoral.

Mas, sabes? A polarização não corre apenas por conta dos radicais que estão em vias de ostracização. É preciso dizê-lo: radicais de outras linhagens e que frequentam outros apeadeiros, que por reação epidérmica deram tanto palco aos radicais apedrejados, também são culpados. Arrisco a heresia: são tão culpados.

Sabes o que é o efeito boomerang? É o que acontece aos que são contra a normalização do Chega. Ficam expostos ao efeito boomerang por hipotecarem a sua própria normalização ao mostrarem que não sabem conviver com as regras do jogo eleitoral. Descansem, esses radicais: de mim não leem, nem lerão, palavras de condescendência com a retórica canhestra, a pose boçal, as entorses à democracia de que os militantes do Chega são fautores. Para desprazer desses radicais de linhagem antagónica, dir-lhes-ei que me causam quase tanta angústia democrática como os que eles acusam de boicotar a democracia.

Sabes, Leonor? Tu não darias azo à carta que João Taborda da Gama escreveu a uma filha no P2 no passado domingo. Voluntarista, como é próprio dos teus 19 anos, perguntaste como é possível haver tanta gente da tua idade a apoiar um partido xenófobo, racista, misógino e homofóbico? Apesar de lidar com jovens da tua idade na sala de aulas, não soube responder. Ainda ensaiei dizer: “É a tua geração, tu conhece-los melhor”. Mas ainda fui a tempo de dizer que recuso o julgamento sumário desses jovens baseado em sociologia de algibeira e em preconceitos que procedem de pessoas que se dizem, de si mesmas, desempoeiradas. Recuso-me a participar neste soez processo de intenções que poderá exacerbar os extremos, a caminho de uma polarização miasmática. Temo que os “verdadeiros democratas” – já li, no passado, este autoatestado de credenciais! – sejam os primeiros a matar a democracia depois da “beleza de matar fascistas”.

Sim, Leonor, tão perigoso é o fascista que, se pudesse, liquidava a democracia, como os “verdadeiros democratas” que se entronizam no papel de tutores máximos da democracia e acabam por a empobrecer do alto da sua falta de lucidez. Estes “verdadeiros democratas” são tão perigosos como os jovens, ou os menos jovens, de extrema-direita que se insurgem contra imigrantes porque “os portugueses estão primeiro”, mesmo que não haja portugueses que cheguem para pagar a tua pensão de reforma e que esses portugueses pratiquem o luxo de não quererem trabalhos que ficam para os imigrantes. Os de extrema-direita metem medo porque pertencem ao exército dos néscios que da História não recolheram ensinamentos – a ignorância também pode matar, sabes? Aqueles que combatem os fascistas ao ponto de cometerem atos que são a negação da democracia mostram as suas credenciais com este princípio de intenções. A alguns deles também falta o conhecimento da História para poderem ser procuradores da democracia.

Sabes, Leonor? Os votos não podem ser tratados desigualmente, menosprezando os que votaram da forma que consideramos odiosa, ou simplesmente incompreensível. Mas ninguém deve interferir na intimidade da consciência eleitoral, que pertence a cada um. Como sabes, nem sequer perguntei em quem votaste.

Leva contigo esta advertência: a arrogância de uns engorda os que por eles são combatidos. Pois há muita gente que se solidariza com os que são colocados no lugar de vítimas.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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