Caso Boaventura: hierarquia do CES “propiciou” assédio e abuso de poder, conclui comissão independente

Relatório da comissão independente é apresentado 11 meses depois de as primeiras denúncias de assédio sexual e moral no Centro de Estudos Sociais terem vindo a público.

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CES demorou quatro meses a criar comissão independente prometida na sequências das denúncias de assédio na instituição Sergio Azenha
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Uma “hierarquia piramidal e uma cultura de informalidade propiciaram “situações de conflito de interesses, de assédio e de abuso de poder”, concluiu a comissão independente nomeada pelo Centro de Estudos Sociais (CES) para averiguar as denúncias de assédio sexual e moral na instituição que, durante anos, foi dirigida pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, contra quem foram dirigidas as principais denúncias.

As conclusões do relatório não são taxativas quanto aos casos de assédio denunciados no CES ao longo do último ano. “A documentação apresentada e as audições realizadas, tanto de pessoas denunciantes como de pessoas denunciadas, não permitiram esclarecer indubitavelmente a existência ou não da ocorrência de todas as situações comunicadas”, lê-se no documento.

No entanto, a análise da informação reunida ao longo dos últimos meses e as versões “compatíveis entre si” apresentadas por denunciantes e denunciados “indiciam padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES”.

A comissão independente sublinha que, face à missão que lhe foi pedida, “não pretende nem poderá substituir-se às entidades ou autoridades administrativas ou judiciais competentes para a apreciação de condutas que possam constituir infracções disciplinares ou infracções penais”.

Ainda assim, os autores do relatório concluem que as várias direcções do CES – que Boaventura de Sousa Santos liderou entre a sua fundação, em 1978, e 2019 – “pese embora da nossa análise tivessem indícios de situações menos próprias nas relações” entre membros da sua comunidade, “subvalorizaram-nas”. “Com isso, podem ter contribuído para a eventual perpetuação das mesmas [relações]”, nota-se.

O relatório lembra o caso concreto das inscrições nas paredes do CES, iniciadas em 2017 (entre os quais o grafito onde se lia “Fora Boaventura. Todas Sabemos”). A direcção do centro, “ignorando e não actuando administrativa e judicialmente, indicia uma maneira leviana de actuação sobre alegados comportamentos que deveriam, por parte de um órgão executivo, ser levados muito a sério, nomeadamente, através de uma investigação interna”.

“Indícios de negligência”

Além disso, “verificaram-se indícios de negligência” na forma como certas questões foram tratadas por parte de algumas pessoas que ocupavam cargos nos órgãos sociais do CES.

A avaliação apresentada esta quarta-feira centra-se na apresentação de um retrato das relações de poder dentro do centro de investigação sediado em Coimbra. Primavam relações “fortemente hierarquizadas”, com “a maioria dos cargos de poder/decisão e de liderança a serem ocupados por um número reduzido de pessoas que exercem um estilo autoritário de liderança”.

Nesse contexto, a existência de reuniões em espaços privados entre pessoas em posições hierárquicas diferentes e dependentes “não se coaduna com uma boa e responsável prática académica”. “A “confusão”, tanto por parte das pessoas denunciantes como por parte das pessoas denunciadas, entre as esferas profissional e privada, indicia que propiciou situações de conflito de interesses, de assédio e de abuso de poder”, apontam ainda os membros da comissão independente.

A direcção do CES já veio a público pedir desculpa às vítimas, na sequência da publicação do relatório. Já um auto-intitulado Colectivo de Vítimas prometeu para “breve” uma apresentação pública, “provavelmente com participação das vítimas, após a análise com rigor dos conteúdos do relatório”.

O documento divulgado esta quarta-feira não nomeia nenhum dos envolvidos, nem vítimas, nem acusados. Mas credibiliza os depoimentos recebidos, nomeadamente de pessoas “que referiram ter tido experiência directa com situações de assédio e abuso”.

Segundo estas pessoas, as “situações ocorreram frequentemente fora do local de trabalho (em restaurantes, bares, por vezes em casas privadas de professores/orientadores), em horário pós-laboral, após o consumo de álcool, reforçando a falta de fronteiras seguras entre a esfera profissional e a esfera privada”.

Existem também “vários testemunhos/denúncias realizados pelas pessoas denunciantes de assédio e abuso sexual (no sentido de contacto físico sexualizado, indesejado e não-autorizado) por parte de pessoas em cargos de poder/chefia ou hierarquicamente superiores”, acrescenta o relatório.

Relações de cariz sexual entre professores e alunas

Uma parte dos denunciados “confirmou vários dos factos alegados nas denúncias apresentadas pelas pessoas denunciantes, nomeadamente a existência de relações íntimas de cariz sexual entre professores/investigadores e alunas/investigadoras, e a presença de situações de assédio moral e de abuso de poder, usando a posição de superioridade hierárquica”.

No entanto, a “maioria das pessoas denunciadas rejeitou liminarmente as acusações descritas no citado capítulo e/ou publicamente feitas, apontando razões políticas, ideológicas, pessoais e académicas para as mesmas [acusações]”, lê-se ainda. Há “pessoas denunciadas que entendem que o CES foi alvo de um ‘golpe de Estado’ e que há em curso uma guerra contra o CES, justificando assim as denúncias vindas a público”.

O relatório foi divulgado ao início da tarde desta quarta-feira no site do CES. É apresentado 11 meses depois de as primeiras denúncias terem vindo a público. Logo na altura, o CES anunciou a constituição desta comissão independente, mas só quatro meses volvidos, em Agosto, viria a constituir o grupo.

A comissão deveria ter entregado o relatório até ao final do ano passado, mas, em meados de Dezembro, foi anunciada uma prorrogação de dois meses nesse prazo, dada a “elevada quantidade e complexidade da documentação” recolhida. A apresentação pública acontece duas semanas depois desse novo prazo.

A comissão independente é constituída pela especialista em Psicologia Clínica Catarina Reis Neves, actualmente directora técnica da Casa de Abrigo para homens vítimas de violência doméstica, a presidente do Instituto Latinoamericano del Ombudsman – Defensorias del Pueblo, Cristina Ayoub Riche, a advogada especializada em contencioso penal, direito de família e sucessões Eduarda Proença de Carvalho, o mestre em Medicina Jorge A. Ribeiro Pereira, hoje membro da direcção da European Network of Ombuds in Higher Education, e a provedora do Estudante da Universidade Palacky, na República Checa, Michaela Antonín Malaníková, que é ainda membro da Câmara de Especialistas de Género do seu país.

Denúncias conhecidas há 11 meses

As denúncias de assédio sexual e moral no CES tiveram origem na publicação de The walls spoke when no one else would (“As paredes falaram quando mais ninguém o fez”), um dos capítulos de Sexual Misconduct in Academia (“Má conduta sexual na Academia”), uma publicação colectiva editada pela editora britânica Routledge.

O artigo é assinado por Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya, três investigadoras que passaram pelo CES. Não identificavam nenhum dos intervenientes pelo nome, mas descreveram a sua experiência de “abandono institucional”, que teria como objectivo “preservar a reputação e o prestígio do centro de investigação e do seu Professor-Estrela”. O “Professor-Estrela” seria Boaventura de Sousa Santos, descrito como a peça-chave das “dinâmicas de poder” da instituição.

As autoras descreviam outras duas figuras: o “Aprendiz”, que seria Bruno de Sena Martins, e a “Sentinela”, Maria Paula Meneses. Os próprios admitiram nas semanas seguintes verem-se representados na descrição feita no artigo.

Nas semanas seguintes, surgiram novas denúncias: da activista argentina mapuche Moira Ivana Millán, que acusa Boaventura de Sousa Santos de agressão sexual, alegadamente ocorrida em 2010 (algo que o investigador entretanto refutou) e da investigadora e política brasileira Bella Gonçalves, que acusa o sociólogo, que foi seu orientador de doutoramento, de tentar um contacto íntimo como forma de “pagamento” pelo apoio académico.

Em Abril foi criado um auto-intitulado Colectivo de Vítimas, que começou por juntar três mulheres e foi crescendo em dimensão, tendo reunido mais de uma dezena de relatos de mulheres que dizem ter sido vítimas de assédio sexual e moral e extractivismo intelectual por parte de dois investigadores do CES.

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