Mal pagos, precários, esgotados e pressionados. O retrato dos jornalistas em Portugal

Crise na Global Media pôs a nu problemas antigos da classe que vai fazer greve geral esta quinta-feira. Jornalistas exigem contratos estáveis, salários dignos e melhores condições de trabalho.

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Sindicato dos Jornalistas convocou greve geral para esta quinta-feira, 14 de Março DANIEL ROCHA
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Estão mais cansados, esgotados e pressionados. Os baixos salários passaram de um problema a uma característica da classe e o mesmo acontece com a precariedade contratual e com a falta de progressão na carreira. Trabalham horas a mais, feriados, fins-de-semana, noites e muitas vezes não são devidamente compensados por isso. Muitos não voltariam a optar pelo jornalismo se tivessem que escolher agora e outros tantos já pensaram em abandonar a profissão.

Há um desequilíbrio ruinoso entre a vida pessoal e a profissional. Estão descontentes com a evolução das condições de trabalho nos últimos cinco anos e com a degradação da profissão em si, que deixou de ser vista pela sociedade como nobre e necessária. O stress é uma companhia quase diária e é difícil para os jornalistas conseguirem “desligar completamente” em férias ou mesmo fora do horário de trabalho.

A crise no grupo Global Media pôs a nu os problemas antigos de toda uma classe, que decidiu convocar uma greve geral para esta quinta-feira, 14 de Março — a primeira em mais de 40 anos. Os jornalistas vão assim parar para exigir contratos estáveis, o aumento geral dos salários e pagamento de horas extraordinárias, mas também para tentar travar a erosão do sector que é um dos pilares da democracia.

Em Abril de 2023, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista contabilizava 5300 jornalistas em Portugal, dos quais 2180 eram mulheres (pouco mais de 40%). Divulgado nesse mesmo ano, o Inquérito Nacional às Condições de Vida e de Trabalho dos Jornalistas em Portugal, realizado pelo Sindicato dos Jornalistas, a Casa da Imprensa e a Associação Portuguesa de Imprensa, com o apoio da Federação Europeia dos Jornalistas, permite saber um pouco mais sobre quem são, onde (e quanto) trabalham.

Tendo como base inquéritos a mais de 860 jornalistas, concluiu-se que a média de idade da classe é de 44 anos. Quase 80% do sector tem formação superior e 11% tem pós-graduação e especialização. A maior parte começou a trabalhar com 24 anos ou menos (70%) e tem um contrato sem termo (580 inquiridos), trabalha à peça (53), a termo (56), com avença formal (44) e colaboração informal (24).

Os horários legais de trabalho mais comuns são 35 e 40 horas, mas a carga real de trabalho exercida aproxima-se ou até ultrapassa as 40 horas totais. Cerca de metade dos jornalistas trabalha mais de dez horas por semana em períodos nocturnos. A remuneração de quem aceitou responder ao inquérito anda, em média, pelos 1225 euros: 31% recebem entre 701 e 1000 euros, 31% entre 1001 e 1500 euros e 17,1% entre 1501 e 2000 euros.

Um terço dos inquiridos disse que existe um grande desequilíbrio entre a vida pessoal e a profissional. A impossibilidade de prever os horários de trabalho, algo que tem um enorme impacto na organização da vida social e familiar, foi largamente sublinhado pelos participantes deste estudo:

— Não há controlo das horas.
— Temos cargas horárias atrozes. Em 19 anos, nunca tive um horário. Nunca sei à segunda-feira o que vou fazer durante a semana.
— Pelas minhas contas, estou a fazer 15 horas extras de trabalho não pago por semana.
— Não posso combinar nada para amanhã porque me podem ligar às nove da noite a marcar trabalho.
— Quando combino alguma coisa com os meus amigos, digo sempre “em princípio”.
— Quando estou a fazer um artigo, eu não como, não durmo, não faço mais nada.
— A profissão está sempre cá.
— Tenho a lista dos temas pendentes sempre na cabeça.
— Tenho uma colega que desinstala as aplicações dos jornais quando vai de férias.
— Um jornalista não tem horário.

Os autores do estudo referem que esta “evidente incompatibilização entre o trabalho, as tarefas domésticas e a vida pessoal” nota-se, sobretudo, nas mulheres, mas vai acabar por se generalizar e afectar toda a classe. “Os salários baixos não permitem suportar trabalho doméstico pago, as famílias alargadas são raras e tornam impossível às mulheres de hoje conciliar tais dimensões.” Além disso, existe um “conflito patente entre as metas, objectivos e resultados exigidos aos jornalistas” e o tempo, qualidade e formação com que podem executar estas tarefas. “Existe uma dissociação abissal entre a natureza do trabalho e a ligeireza exigida por chefias e direcções. Existem, portanto, riscos evidentes para a saúde mental: sobrecarga, conflitos éticos, degradação da qualidade do trabalho”, é ainda referido.

Um estudo mais antigo, ainda mais actual, pode ajudar a traçar um retrato mais amplo. Desenvolvido por uma equipa do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), em parceria com o Sindicato dos Jornalistas e o Obercom, concluiu em 2017 que a progressão na carreira (neste caso, a falta dela) é outro dos motivos de descontentamento da classe. Quase 82% dos 1500 jornalistas inquiridos não tinham progressão há mais de quatro anos, mesmo nas empresas de comunicação social onde está prevista. Cerca de 28% não progrediam na carreira há mais de uma década e mais 29% tinham a carreira congelada há pelo menos sete anos.

Mais de 64% dos inquiridos assumiram que já ponderaram abandonar a profissão e quase 40% não voltavam a optar pelo jornalismo se tivessem de escolher novamente. A maioria dos jornalistas ouvidos pensava ser provável ficar desempregada e, caso isto acontecesse, acreditava que dificilmente conseguiri ter uma nova oportunidade num meio de comunicação social.

Risco de burnout

Rita Araújo, investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, está há vários meses a desenvolver um estudo sobre a saúde mental no jornalismo, em particular sobre o esforço emocional. Depois de entrevistar 50 jornalistas, com idades dispersas e com tempos de profissão que variam entre alguns meses e mais de 40 anos, a investigadora concluiu que há uma questão que sobressai: as questões laborais e a precariedade.

“A maior parte dos jornalistas da minha amostra tem vínculos permanentes às empresas, mas, ainda assim, muitos falam em insegurança laboral. Quando questionei sobre o evento que ao longo da carreira teve mais impacto psicológico negativo, muitos, sobretudo os jornalistas seniores, falaram em despedimentos colectivos nas empresas para as quais trabalham. Há esta noção de que, mesmo tendo vínculos permanentes, o seu lugar não está nunca assegurado e de que ninguém está a salvo quando há um despedimento colectivo. Recordo-me de que houve um jornalista que me disse que era só mais uma linha num Excel. Isto cria, naturalmente, um esforço emocional acrescido e uma sensação permanente de instabilidade.“

Através das conversas com o grupo de jornalistas, Rita Araújo também concluiu que quase 30% estão ou estiveram, em algum momento, a ter apoio psicólogo ou psiquiátrico e 20% têm doenças já diagnosticadas, como a ansiedade, a depressão e o burnout, sobretudo. A investigadora fala ainda de factores que têm impacto não só no trabalho, mas também na vida pessoal. “Vários jornalistas referiram ataques de choro durante o trabalho, insónias, falta de motivação e de concentração, exaustão, falta de vontade de ir trabalhar.”

Das várias empresas de media a que pertencem os entrevistados, apenas uma forneceu, desde o início da pandemia, apoio psicológico aos seus trabalhadores. “De resto, os mecanismos implementados nas redacções são praticamente inexistentes. Isto, aliado aos baixos salários que os jornalistas têm, não deixa grande espaço de manobra para que possam procurar ajuda, antes de o caso se deteriorar a tal ponto que possam já configurar uma situação de burnout.”

E outros dos problemas que emergiram durante as entrevistas foi a questão da violência — física, verbal, online e offline — contra os jornalistas. Quase 80% reconhecem ter sido, em algum momento da carreira, vítima deste tipo de violência. Vários profissionais dizem ter recebido ameaças de morte por e-mail, redes sociais ou por telefone e uma das jornalistas teve uma arma apontada à cabeça. "Os abusos online passam por ameaças ou insultos e muitos configuram situações de assédio, são situações reiteradas, mas existe uma normalização deste tipo de comportamentos, não só por parte dos jornalistas, mas também por parte da sociedade. Isto está relacionado com a perda de reconhecimento que a profissão foi sofrendo ao longo dos anos, a perda do estatuto do que é ser jornalista”, refere a investigadora.

Ainda sobre as dificuldades da profissão, vários dos jornalistas disseram sentir-se como “operários” e admitiram chegar ao final do mês com muitas dificuldades. Um dos jornalistas referiu que “existe sempre mais mês do que dinheiro” e vários admitiram recorrer a ajuda familiar para poder pagar as contas, inclusive profissionais que não estão em início de carreira. “Isto pode levar também a um problema de diversidade nas redacções. Aqueles que conseguem aceder à profissão já vêm de um lugar de privilégio que lhes permite estar ou no Porto ou em Lisboa, quase pagar para fazer um estágio que depois lhes permite aceder à profissão”, afirma ainda a investigadora. “Isto prejudica-nos a todos. É mau não só para o jornalismo, que nos deve trazer uma diversidade e pluralidade de vozes, de temas, de ângulos, mas também para a própria democracia.”

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