Um voto é como uma espingarda
“Um voto é como uma espingarda; a sua utilidade depende do caráter do utilizador.” (Theodore Roosevelt)
O meu filho é um rapaz educado, simpático e gentil. Digo-o para me autoelogiar, claro, assim como elogiar a mãe e todos os que participaram na sua educação.
Nem sempre sei o que o meu filho pensa. Nem é suposto. Mas às vezes, confesso, ajo como se soubesse. “Eu conheço-te, filho”, é uma frase que de vez em quando me escapa. Não muito, mas escapa. E escapa porque acompanhei de perto o meu filho desde que nasceu e nele vive uma parte (uma parte grande!) de mim e que por isso (erradamente, bem sei) às vezes digo conhecer como a mim próprio. A psicologia explicará isto.
Ele, o João (sim, há bastante narcisismo aqui, mas a verdade é que a escolha foi consensual), votou ontem pela primeira vez. Não faço ideia em quem votou.
“Não perguntou, João?”
“Não. Era suposto?”
Haverá quem ache que sim e quem ache que não. Haverá quem o tenha feito, haverá quem não o tenha feito ou quem nem sequer lhe tenha passado tal coisa pela cabeça. Enfim, haverá de tudo. E ainda bem. É a diversidade de pensamento que torna a democracia tão rica.
Mais uma pergunta para mim próprio: “está o João bem informado sobre os programas dos partidos que concorrem a estas eleições?”
Falámos disso. Sei que conhece os partidos, os líderes dos partidos e mais alguns membros e, em traços gerais, as chamadas “questões fundamentais dos programas eleitorais”. E sei, e isso é mesmo o que considero mais importante, que tem uma opinião sobre tudo isso e sobre as coisas em geral. E ter opinião supõe interpretação, evita que se adote um ponto de vista simplesmente por cegueira, fanatismo ou clubismo (é a mesma coisa?). Ter opinião resulta de interpretar informações, dados, leituras, experiências, interações ou situações, e de analisar, contextualizar e dar significado ao que é percebido.
Toda a vida falei ao João sobre o preço das coisas, sobre o que é caro ou barato, sobre o que é razoável ou absurdo, sobre poupar e sobre a importância de gastar no que nos acrescenta, sobre justiça e injustiça, sobre não prejudicar, sobre ajudar e não ser indiferente. E, sobretudo, sobre pensar pela sua cabeça. O João é um bocado teimoso nisso, uma virtude que herdou do pai.
Numa ocasião, tinha o João 6 anos, um menino de outra sala, que tinha dificuldades em falar, bateu à porta e tentou expressar-se para dar um recado à professora. Todos desataram-se a rir. O João, miúdo tímido e muito reservado, levantou-se e, para grande espanto da professora, disse: “Não deviam fazer isso, e se fosse convosco?” Não juro que tenham sido estas as palavras, mas o sentido foi este.
Anos mais tarde, com 14 ou 15 anos, durante uma corrida na escola que dava acesso a uma final interescolar, o João, que é altamente competitivo e detesta perder, parou para ajudar um colega que desfalecera. Isso impediu que se qualificasse para a final. Mas recebeu um merecido louvor.
Mais do que o sentido do seu voto, foram estes episódios que me passaram pela cabeça quando me sentei a escrever este texto sobre o primeiro ato de votar do meu filho, 18 anos feitos em outubro do ano passado. Votar é mais do que simplesmente expressar uma preferência por questões sociais, políticas ou pessoas. E, repito, nunca deve ser uma cegueira, fanatismo ou clubismo. Votar é o resultado de uma análise crítica e interpretativa do que nos somos e do que nos rodeia, é ter uma visão do mundo.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990