Na Internet contaminada pela misoginia, que futuro se constrói para as mulheres?

Nas redes sociais, e em particular entre os mais jovens, um passado idealizado e frustrações partilhadas deixam homens e mulheres sob ameaças de que “todos e todas somos vítimas”.

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Um quinto dos jovens afirma já ter sido vítima de violência nas redes sociais Pexels/Isabelli Pontes
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“Menina em casa de seu pai, obedece. Como mulher deverá um dia obedecer em casa de seu marido!” A passagem de Ema, livro de Maria Teresa Horta, publicado em 1984, espelha hoje os desejos saudosistas de alguns. Enquanto nas redes sociais ganha terreno um discurso sexista e de exaltação de uma masculinidade hegemónica, considerada padrão, que alimenta (e se alimenta de) desigualdades perpetuadas offline, que futuro se constrói para as mulheres?

Cada geração é, de modo geral, mais progressista em relação à dos seus pais. Pelo menos, é essa a história que as últimas décadas contam. Agora, rapazes adolescentes e jovens adultos parecem caminhar no sentido inverso, em direcção ao conservadorismo.

O P3 ouviu vários especialistas sobre questões de género, expressões de violência, redes sociais, estudos de segurança e saúde mental e há, para todos, uma conclusão evidente: não é possível falar do alastrar de um discurso misógino e discriminatório sem olhar para o crescimento de movimentos de extrema-direita e direita radical.

“É um perigo ver fenómenos como o do Andrew Tate — mais radicais, mais misóginos, mais violentos — como um caso isolado. Já são tendências gerais, totalmente mainstream, e que tomaram conta do aparelho político em vários países”, admite a investigadora Júlia Garraio, do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. Narendra Modi, na Índia; Recep Tayyip Erdogan, na Turquia; ou Viktor Orbán, na Hungria: eis alguns dos governantes ainda no poder que reproduzem esses discursos.

“De uma perspectiva transnacional, a globalização e a economia neoliberal criaram muita ansiedade", tornando algumas profissões e profissionais redundantes, explica Júlia Garraio. “E em certos sectores [predominantemente masculinos], a ameaça da globalização e a precariedade são sentidas como um atentado à masculinidade, ao sentido de ser homem. (...) Realmente, é sedutor um discurso que promete devolver unidade e valor social.”

A duas semanas das eleições legislativas de 10 de Março, uma sondagem da Universidade Católica para o PÚBLICO, RTP e Antena 1 indicava que 50% dos jovens inquiridos (entre os 18 e os 34 anos) tencionava votar à direita. No pódio: Aliança Democrática, Chega e Iniciativa Liberal. Cerca de 24% admitiam votar em partidos mais à esquerda e 27% estavam indecisos.

Em 2022, como em 2023, foram sobretudo os homens mais jovens que assumiram votar no Chega. Segundo o analista político Pedro Magalhães, foi o mesmo partido que, em 2023, provocou maior divisão entre géneros. Foi o único em relação ao qual os homens manifestaram, de forma clara, maior probabilidade de intenção de voto em relação às mulheres.

Quanto ao eleitorado feminino que também reproduz um discurso sexista e antifeminista, Sílvia Roque, professora de Relações Internacionais da Universidade de Évora, lembra que, à partida, o discurso normal na sociedade é o de reprodução do patriarcado”: a valorização da família tradicional, a maternidade como grande missão de vida de uma mulher, a responsabilidade assumida pela educação dos filhos. Ao mesmo tempo, a dificuldade em conjugar a maternidade com a vida profissional gera insatisfação face à ordem económica e social – o mundo moderno torna-se “penalizador” para a mulher.

“Dizer ‘o teu marido pode voltar a trabalhar, o teu filho vai arranjar um emprego, e aí a tua vida vai ser mais fácil’ pode parecer mais apelativo e promissor do que o discurso feminista, de igualdade de género e empoderamento”, resume a investigadora do CES Júlia Garraio.

Todos e todas somos vítimas de discursos misóginos

Online, a chamada "manosfera" (um conjunto de sites e redes sociais onde são promovidos ideais misóginos) prolifera em subculturas. Numa delas, o salto dos meros desabafos para a concretização de violência está já documentado: os incels. Homens involuntariamente celibatários, que se definem pela incapacidade de manter relações sexuais ou românticas, apesar de as desejarem.

Nos últimos anos, formaram comunidades online onde prevalecem a misoginia e os incitamentos à violência contra mulheres, com base na crença de que estas lhes estão a negar um “direito ao sexo”, por não se sentirem fisicamente atraídas por eles. Não é a vitimização e frustração partilhada que fazem destes fóruns redes de apoio, mas o discurso de ódio que os torna possíveis berços de atitudes extremistas.

“Os ideais da masculinidade hegemónica patriarcal são ideais que muitos homens querem cumprir, mas muitas vezes não conseguem. E isso pode levá-los a ter comportamentos exagerados, para que sejam reconhecidos como homens”, justifica Tiago Rolino, jurista, activista e mestrando em Estudos sobre as Mulheres. Mas não é apenas nas subculturas mais radicalizadas que reside o discurso de ódio.

“A violência online contra as mulheres reúne um conjunto de diferentes padrões de violência que decorrem de comportamentos ofensivos, tóxicos, discriminatórios, que mostram como é possível subverter as plataformas digitais. E, claramente, estes espaços tecno-sociais transformaram-se em espaços de insulto”, reforça Inês Amaral, investigadora e subdirectora do Departamento de Filosofia, Comunicação e Informação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Quando os dedos apontam para uma vítima, culpabilizando-a pela violência de que foi alvo, como acontece frequentemente em casos de assédio sexual, “as consequências psicológicas são óbvias: sintomatologia depressiva e ansiógena, isolamento, questionamento da própria experiência: ‘Será que fui eu que provoquei?’”, exemplifica a psicóloga Ariana Pinto Correia, especializada em violência doméstica e de género.

E quem assiste ao proliferar desse discurso — “agora já não se pode dizer nada, agora é tudo violência” —, mesmo não sendo vítima directa dele, mais dificilmente se irá expor ou pedir ajuda numa situação semelhante.

“Todos e todas somos vítimas desses discursos”, lembra Ariana Pinto Correia. “A partir do momento em que estas narrativas se tornam mais expressivas nas redes sociais, são normalizadas, incluindo por uma ala política que as fomenta e que descredibiliza as lutas feministas e as conquistas dos últimos 50 anos.”

Se, além disso, existirem ameaças, veladas ou não, é expectável que a vítima comece a policiar a própria vida — onde vai, com quem vai —, que se autocensure nas redes sociais e se autodiscipline fora delas. Nas suas consequências mais severas, essa violência pode levar a uma perda de auto-estima e a comportamentos autolesivos.

A ironia e humor criminosos

“Tinha medo de eventualmente estar a ser perseguida. Comecei a adaptar as minhas rotinas e passei a torná-las o mais imprevisíveis possível, para evitar algum tipo de problema”, afirmou Renata Cambra, porta-voz do Movimento Alternativa Socialista (MAS), em tribunal, no mês passado.

Em causa estava uma troca de mensagens no Twitter, em 2022, em que o militante neonazi Mário Machado defendeu a “prostituição forçada das gajas do Bloco [de Esquerda]”. Um amigo, Ricardo Pais, retorquiu: “Incluam as do MRPP, MAS e PS.” “A Renata Cambra terá tratamento VIP”, especificava. As declarações levaram o Ministério Público a acusar Mário Machado de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, crime punível com pena entre seis meses e cinco anos de prisão.

Dias depois dessas publicações no Twitter, Mário Machado argumentou, num direito de resposta na revista Sábado, que “a ironia e o humor ainda não são crime em Portugal”.

Também no mês passado, no debate entre Mariana Mortágua e André Ventura, a líder do Bloco de Esquerda acusou o Chega de ser “uma ameaça para as mulheres”, numa referência à intenção assumida por Ventura de cortar 400 milhões de euros alegadamente atribuídos pelo Estado àquilo que classifica como “ideologia de género” — afirmações já desmentidas e contextualizadas pelo PÚBLICO.

Em resposta, o candidato do partido de direita radical posicionou o Bloco de Esquerda “ao lado de violadores e agressores de mulheres”, um tipo de crime que o Chega já associou a algumas comunidades de imigrantes. E não é uma coincidência, muito menos novidade, que caminhem lado a lado os discursos misógino e xenófobo e anti-imigração. Os autores destes discursos, maioritariamente homens brancos, heterossexuais, cisgénero, procuram “um regresso ao passado, onde o sistema patriarcal ainda era mais violento, mais forte”, não havia lugar para a alteridade e os seus privilégios eram inquestionáveis.

“São, claro, discursos de ódio, encaixam naquilo que diz a lei sobre o que é um comportamento criminoso e exacerbado", considera o investigador Tiago Rolino. “Querem um retrocesso dos direitos conquistados, tanto por mulheres, como por pessoas de género não-binário e de outras origens étnicas e raciais."

Tentam, por isso, elucidar as mulheres sobre o que é ser mulher. Aos seus pares, explicam como se devem comportar perante elas, em relações de amizade, a nível romântico ou sexual, e como ser um "homem a sério", em linha com a masculinidade hegemónica: forte, racional, dominante, competitivo, individualista, sexual.

Mansplaining e cyber flashing — ou a exibição não desejada

O discurso de ódio sexista é o ataque mais frequente contra as mulheres nas redes sociais: dos insultos ao mansplaining (a atitude masculina de explicar algo de forma condescendente e paternalista a uma mulher).

Mas os especialistas ouvidos pelo P3 destacam uma forma de violência e assédio particularmente comum e normalizada entre os mais jovens: o cyber flashing. Traduzindo: o envio não consentido e não desejado de fotografias de cariz sexual explícito. Sublinham ainda a gravidade de casos de partilha não consentida de conteúdos íntimos na Internet (violência sexual baseada em imagens), que continuam a ser frequentes.

No passado Dia dos Namorados, 14 de Fevereiro, a União das Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) divulgou um estudo nacional sobre violência no namoro, em que um quinto dos jovens inquiridos (mais de 800) admitiu já ter sido vítima de violência através das redes sociais, seja por um insulto deixado numa caixa de comentários ou pela violação da intimidade e privacidade online.

"Espero que não seja preciso cada um sentir na pele as consequências, seja o aumento das desigualdades, do racismo ou a ameaça ao direito ao aborto, para reagir", antecipa Sílvia Roque. Porque, além do risco de retrocesso, existe no horizonte um cenário "muito perigoso": o da estagnação.

Se foste ou conheces alguém que tenha sido vítima de alguma destas formas de violência podes pedir ajuda, aconselhar-te ou denunciar conteúdo ilegal através da Linha Internet Segura, coordenada pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima: 800 21 90 90.

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