Saúde mental dos procuradores ainda mais preocupante que a dos juízes

“Em vez de trazer a cama para o tribunal, levei os processos para casa. Deu o mesmo resultado”, contou magistrado a investigadores do Observatório Permanente da Justiça.

Foto
A amostra de inquiridos usada pelo Observatório Permanente da Justiça do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra corresponde a 21,4% dos 1500 magistrados do Ministério Público Matilde Fieschi (arquivo)
Ouça este artigo
00:00
04:45

Foi revelado há poucos meses que a saúde mental dos juízes não anda bem, devido ao excesso de trabalho e à pressão laboral. Graças a um estudo da mesma equipa que analisou os magistrados judiciais ficou a saber-se esta quinta-feira que a situação dos procuradores é ainda “um bocadinho mais preocupante” que a dos primeiros.

A amostra de inquiridos usada pelo Observatório Permanente da Justiça do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra corresponde a 21,4% dos 1500 magistrados do Ministério Público em exercício de funções nos tribunais. “Em vez de trazer a cama para o tribunal, levei os processos para casa. Deu o mesmo resultado, mas foi a alternativa que se conseguiu. Fiz interrogatórios de arguido detido até às tantas da manhã, às vezes dias seguidos”, disse aos investigadores um dos magistrados entrevistados.

Apesar de o risco de burnout ser ligeiramente superior para os juízes, situando-se nos 17% contra 15% no caso dos procuradores, um dos coordenadores do estudo, João Paulo Dias, explica que depois de analisados todos os indicadores o desgaste profissional dos segundos se apresenta “um bocadinho mais preocupante”.

Há tribunais onde exercer se torna particularmente duro, contou outro entrevistado: “Quando há alguma dúvida, às 5h/6h da manhã, a polícia liga-nos a perguntar se podem fazer a detenção de determinado indivíduo. Às vezes, ainda estamos a dormir e nem sabemos do que é que estamos a falar”. E há quem tema não conseguir continuar a dar conta do recado: “Ninguém aguenta este ritmo de uma forma permanente. Vou para casa, mas levo dentro de mim os problemas. Porque tenho aqueles processos por despachar (…), porque tenho não sei quantas violências domésticas no meio disto tudo e não consigo dar conta. Uma coisa é o ritmo elevado ser cíclico e haver espaço para respirarmos … Mas não. Basicamente, o que nos pedem é um permanente estado de resiliência”.

Em média, estes magistrados trabalham 45,7 horas por semana. Perto de metade (48,8%) afirmam despender entre 36 e 51 horas semanais com o serviço, enquanto cerca de 30% garante trabalhar mais de 52 horas. “Das respostas é possível ainda constatar que perto de 60% afirma trabalhar durante o seu tempo livre várias vezes por semana ou todos os dias para responder a solicitações do trabalho, sendo que mais de 80% afirma trabalhar ao sábado ou ao domingo pelo menos uma vez por mês”, refere ainda o observatório. Cerca 30% encontra-se deslocado da sua residência para exercer funções

São de vários tipos as repercussões do stress na saúde mental. Um terceiro entrevistado relatou aos investigadores que acordava já cansado. “Há pouco tempo falei com colega que me disse que tinha vomitado durante a noite toda com o stress, por causa de uma decisão que tinha de fazer naquele dia”, relatou.

Vomitar a noite toda

João Paulo Dias explica que mitigar estes problemas passa por criar no sistema judicial gabinetes de apoio especializados, para detectar situações em que os profissionais estejam a chegar ao limite e para os ajudar. “O seu grande sentido de dever faz com que muitos continuem ao serviço já sem condições de saúde para exercerem”, em vez de meterem baixa médica. Nesses casos, qualquer atraso ou descuido não é perdoado, continua, o que faz com que sejam duplamente penalizados: disciplinarmente, por não terem cumprido cabalmente a sua função, e ao nível do sofrimento psicológico.

As entrevistas mostram isto mesmo. “A certa altura, vi-me obrigada também a medicar-me. [...] Estava mesmo a ficar num nível um bocado assustador. Só que não meti baixa nessa altura. Tomei a medicação e continuei a trabalhar”, confidenciou uma procuradora. Outra colega confirmou haver muita gente em burnout. “Mas há pessoas que estão em burnout e não estão de baixa […] porque depois isto circula internamente e há aqueles comentários desnecessários que muita gente tem ‘Se calhar entrou para uma profissão que não devia’. Não tem nada a ver. Se levarmos com mil inquéritos, não há ninguém neste mundo que aguente”.

O coordenador da investigação adianta ainda que 30% dos inquiridos qualificam a sua saúde mental como má ou muito má. A redução do volume de serviço a quem não se encontra a 100 por cento é outro caminho possível, adianta João Paulo Dias.

Mais de metade dos magistrados identificam como factores específicos com maior impacto no stress o volume processual, a falta de apoio à conciliação entre trabalho e família, as inspecções judiciais e os concursos na carreira. O depoimento de mais uma procuradora dá conta da reacção da sua chefia quando engravidou do segundo filho: “Parabéns! Pois, mas agora vai ser uma complicação”.

O estudo sobre condições de trabalho, desgaste profissional e bem-estar dos magistrados do Ministério Público portugueses resultou de um acordo entre o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, a Procuradoria-Geral da República e o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários