A habitação nos programas eleitorais: na direção certa?
Analisam-se aqui as medidas propostas nos programas eleitorais dos partidos com assento parlamentar, tendo em conta o resultado que políticas similares obtiveram noutros países.
A habitação é um dos grandes temas em debate nas legislativas de 2024. Todos os partidos reconhecem a necessidade de uma renovada ação do Estado no setor. Uma análise aos programas dos partidos com assento parlamentar mostra uma variedade de medidas propostas, cuja eficácia é aqui analisada tendo em conta o resultado que políticas similares tiveram no passado e em outros países. Com este exercício, pretendemos perceber a assertividade das propostas dos partidos nesta área.
Incrementar a oferta
Uma pluralidade de instrumentos (fiscais, de liberalização do planeamento urbano, disponibilização de solos públicos, desburocratização) visa estimular a construção e colocar no mercado mais unidades habitacionais, na expectativa de o aumento da oferta baixar os preços. Está, porém, solidamente demonstrado que, face às peculiaridades do mercado da habitação, o aumento da oferta não reduz, por si só, os preços, especialmente em mercados sobreaquecidos, como o de Portugal. Veja-se o rápido aumento dos preços verificado em países como Espanha ou Irlanda antes de 2006, quando a oferta era muito superior à procura. A utilização destes instrumentos só é útil se garantir que a nova construção entre no mercado a preços acessíveis.
Subsídios ao crédito
São apresentados instrumentos (fiscais e financeiros) de apoio ao acesso ao crédito para aquisição de casa própria, sobretudo a jovens. Embora a democratização da propriedade possa, em certos contextos, contribuir para a redução das desigualdades geracionais e outras, a história mostra que estes subsídios nem sempre têm o efeito desejado. No mercado da habitação, o incremento de liquidez implica estruturalmente o aumento dos preços: um policy brief de 2011 da Associação Lisbonense de Proprietários admitia que os juros bonificados (a forma que estas facilitações tiveram até 2002) conduziram ao aumento dos preços, tendo o apoio sido captado apenas pelo sector privado. Há assim dúvidas de que esta medida tenha um impacto redistributivo no acesso à propriedade.
Subsídios ao arrendamento
Trata-se de várias formas de transferências fiscais ou monetárias aos arrendatários (desde jovens a famílias vulneráveis) que permitem a redução dos encargos com o arrendamento. Uma atenta utilização desta medida pode ajudar algumas pessoas ou famílias a entrar ou manter-se no mercado livre de arrendamento. Contudo, na ausência de uma robusta regulação do mercado, os subsídios contribuem para o incremento dos preços, não resolvendo o problema na sua origem.
Subsídios para a habitação acessível
Trata-se de medidas geralmente fiscais, de atração dos senhorios e da indústria de construção para o mercado do arrendamento acessível, segundo determinados critérios (atualmente, estão isentas de IRS as rendas pelo menos 20% abaixo do valor de mercado, com algumas condições). Estas medidas podem ter impacto a curto prazo, caso haja forte adesão (o que não tem acontecido em Portugal), mas coexistem com um mercado sobreaquecido e não se refletem na baixa dos preços. Simultaneamente, a noção de acessibilidade determinada com base no valor de mercado e não nos rendimentos auferidos pode, na prática, revelar-se inacessível para uma grande fatia da população.
Investimento na habitação pública
Quase todos os partidos defendem a promoção direta de habitação a preços controlados ou acessíveis, através da disponibilização de património público devoluto e/ou da construção de nova habitação pública. As diferenças residem no tipo de habitação a criar. Um amplo estoque de habitação pública, além de resolver as necessidades das famílias que a ele acedem, pode reduzir os preços no mercado livre por regulação indireta. Para isso, a habitação criada precisa manter-se fora do mercado e, simultaneamente, o parque habitacional público precisa de ser robusto. Tendo Portugal apenas 2% de habitação pública, é essencial investir-se neste sector, mas conscientes que o impacto só se fará sentir a longo prazo.
Regulação do mercado
Finalmente, alguns partidos propõem influenciar-se os preços da habitação limitando formas específicas de investimento, protegendo os inquilinos, definindo tetos para as rendas ou normas-travão para o seu aumento. Estas medidas podem, no imediato, arrefecer os preços e dar tempo à implementação de outras políticas, evitando a gentrificação e a especulação imobiliária. Medidas que limitem a utilização do parque habitacional por parte de atividades ou grupos específicos (p.e. Alojamento Local e Residentes Não Habituais) são desejáveis, mas carecem de ajustes a nível local. A regulação do mercado deve, pois, ser considerada, merecendo um debate profundo e esclarecido sobre os modelos a adotar.
Em síntese
Há ainda um longo caminho a percorrer na operacionalização das políticas públicas de habitação. É positivo esse reconhecimento por parte de todas as forças políticas. Muitas das medidas propostas, porém, não têm em conta as especificidades do mercado de habitação ou são novas versões de políticas que demonstraram ter um impacto limitado ou perverso, para além da invisibilidade no debate das situações de indignidade habitacional em que vive parte da comunidade cigana e migrante ou sem-abrigo, ou mesmo vítimas de violência doméstica.
As características e especificidades do contexto português mostram que é preciso acionar diferentes campos de intervenção, tendo em conta a realidade dos núcleos urbanos, onde o mercado se encontra particularmente sobreaquecido, mas também outras realidades territoriais. Esta necessidade leva-nos a reforçar a importância de uma visão estratégica, capaz de estabelecer prioridades e assumir uma ação integrada ao nível da habitação, que não se esgota no acesso a uma casa. É fundamental discutir a repercussão da habitação noutros temas, como a coesão social e territorial e a mitigação às alterações climáticas.
Sem colocar em causa a necessidade de uma resposta combinada (medidas de promoção pública de habitação, fiscais, de subsidiação e de regulação legal), entendemos que os princípios gerais da ação do Estado devem privilegiar duas direções: 1) investimentos públicos que visem o aumento do leque de fogos fora do mercado livre, tanto em habitação pública, como cooperativa ou outra desvinculada da lógica do mercado; 2) limitação da procura especulativa tanto na compra/venda como no arrendamento. Países e cidades que tiveram e têm sistemas capazes de garantir o acesso universal à habitação mostram-nos que é esse o caminho a seguir. Os partidos que apresentam medidas nestas direções encontram-se melhor preparados para resolver a atual crise da habitação, aconselhando-se que sejam combinadas medidas de vários programas para uma solução habitacional robusta.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico. Texto preparado por: Simone Tulumello, Sílvia Jorge, Rita Castel’ Branco, Francesco Biagi, André Carmo, Nuno André Patrício, Luís Mendes, Saila Saaristo. Subscrevem: Claudio Carbone, Tiago Mota Saraiva, Rita Silva, Sílvia Leiria Viegas, Jorge Malheiros, Joana Mourão, Ana Catarino, Marco Allegra, Maria Assunção Gato, Joana Lages, José Carlos Guinote, Ana Estevens, Jannis Kühne, Ana Catarina Ferreira, Ricardo Agarez, António Ricardo, Tiago Castela. O texto resulta de um debate realizado na Rede H – Rede Nacional de Estudos sobre Habitação.