Desistir do trabalho de sonho pode ser o recomeço da carreira profissional

Decisão está relacionada com o quiet ambition, tendência que privilegia a saúde física e mental em detrimento das ambições profissionais.

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Desistir do trabalho dos sonhos pode ser o recomeço da carreira profissional Brooke Cagle/Unsplash
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Foi a esconder as lágrimas que Bruno deixou o emprego com que sempre sonhou, depois de fechar o computador para que a câmara e os colegas de equipa não o vissem com os olhos marejados. O publicitário tomou a decisão em 2021, com o apoio da esposa que estava grávida.

“Desistir foi difícil, levou com toda a carga emocional da pandemia. Ninguém aguentava mais ver os colegas através do ecrã do computador, estava esgotado”, diz Bruno Tavares, de 40 anos. “Tinha vontade de morar no interior e cuidar do meu filho durante mais tempo do que os cinco dias da licença de paternidade [no Brasil].”

Foram quatro anos a trabalhar na área de comunicação da associação Doutores da Alegria — um sonho para o publicitário que nasceu em Belo Horizonte e assistiu, quando era pequeno, ao documentário dos palhaços que animam crianças hospitalizadas.

Ao trabalhar no terceiro sector (que inclui organizações sem fins lucrativos), Bruno deixou uma vida mais luxuosa em agências de publicidade onde já era director de arte. O voluntariado e o abraço de uma criança num projecto social fizeram-no despertar para um trabalho com impacto positivo.

“Aquele abraço me deixou completamente desarmado e ‘caiu uma ficha’. Passava demasiado tempo pensando em soluções mirabolantes para vender carros”, explica à Folha de S. Paulo.

Mudou a carreira profissional aos 30 anos. Perto dos 40, sob influência da pandemia e de um cancro que enfrentou em 2018, mudou-se para o município de Americana, em São Paulo, onde vive com a esposa e o filho Caetano, de dois anos.

Pedi a demissão e foi como saltar do precipício, só que descobri um pára-quedas a meio do salto”, afirma. Actualmente é coordenador de comunicação no Pró-Saber SP, associação que actua na comunidade de Paraisópolis com projectos de leitura, e tem um horário de trabalho que se adequa às suas necessidades.

A tendência de desistir de uma carreira de sucesso ou de posições de liderança em nome da saúde física ou mental dá pelo nome, em inglês, de “quiet ambition”. “São pessoas com uma situação económica mais estável que decidem aquietar suas ambições e, em último caso, até negar seus sonhos”, afirma Eduardo Migliano, CEO da consultora 99jobs.

Se, há algum tempo, ser director de uma grande empresa era o sonho de muitos jovens recém-empregados, hoje esse discurso não é tão recorrente. Ter horários flexíveis e um regime de trabalho híbrido ganharam importância no pós-pandemia.

“O filho vê o pai endividado, stressado, a chegar tarde a casa e não quer isso para ele. E começa a ter menos ambição do que a geração anterior a ele”, destaca Eduardo.

Na investigação Mulheres em Local de Trabalho, conduzida pela empresa de consultoria norte-americana McKinsey & Company em parceria com a organização LeanIn.Org, 38% das mulheres com filhos pequenos afirmaram que, sem flexibilidade no local de trabalho, teriam de abandonar a empresa ou reduzir o horário de trabalho. O estudo foi feito com 276 empresas que empregam mais de dez milhões de pessoas.

Da mesma forma, os pedidos de demissão voluntária tiveram um aumento no ano passado. Segundo um estudo da LCA Consultores, feito a partir de dados do Ministério do Trabalho e Emprego do Brasil, o país registou mais de sete milhões de pedidos deste tipo entre Setembro de 2022 e 2023.

No entanto, o crescimento começou a notar-se desde 2021, quando o mercado mostrou sinais de recuperação depois da crise pandémica. A maioria dos pedidos de demissão registou-se entre as pessoas mais escolarizadas e jovens.

Segundo Eduardo, há uma percentagem considerável da população brasileira que historicamente não teve acesso a empregabilidade e privilégios, que está à procura de um emprego de sonho. E é por isso que se tem manifestado hoje em dia por meio de medidas que eliminam as desigualdades em universidades e empresas.

“Esses profissionais estão em busca de um espaço psicologicamente seguro para poderem contribuir e crescer. O emprego dos sonhos está também relacionado com dinheiro, mas o que torna as pessoas verdadeiramente realizadas é o facto de serem ouvidas e se sentirem úteis”, afirma.

Renata Hilario, de 40 anos, acredita ter um trabalho de sonho: é co-criadora e produtora executiva do podcast Mano a Mano, do rapper e compositor brasileiro Mano Brown. O único problema é o facto de o podcast ser intermitente e não garantir um salário certo ao final do mês para sustentar a família em São Paulo.

Renata também trabalha como executiva de marketing na ONU, depois de ter integrado a primeira leva de programas de inclusão racial em empresas como a Meta e ter passado por empresas que, segundo diz, não estavam preparadas para lidar com pessoas negras.

“Estava no início da pauta [do pacto] de diversidade e inclusão e ninguém sabia fazer a gestão desses talentos”, destaca, acrescentando que, em determinado momento, acabou por ter um burnout. Chegou a pensar desistir do trabalho na grande empresa onde estava, e do cargo que ocupava e que era desejado por executivos, quando, no final de 2022, sofreu um processo de demissão traumático.

Depois disso, desistiu de concorrer a uma vaga num banco, apesar de esse ser o emprego de sonho para a menina criada no extremo Leste de São Paulo, que ouvia a avó dizer que não dava para perder um trabalho com carteira profissional.

“Sabe como é o período de escassez. Fiquei insegura, era véspera de ano e a vaga era boa, mas quando pensava em trabalhar tinha crises de ansiedade”, afirma. Sete meses depois, Renata recebeu a notícia de que tinha passado num processo de selecção para a ONU.

Para Eduardo, da 99jobs, o mercado de trabalho ainda está a aprender a reter talentos — não só os que ingressam por programas de diversidade, mas também os de gerações mais novas. “O trabalhador que não tem um espaço psicologicamente seguro para fazer o que precisa de ser feito, desiste. Percebe que não está contribuindo, está só obedecendo.”


Exclusivo PÚBLICO/Folha de S. Paulo
Nota do editor: o PÚBLICO respeitou a composição do texto original, com excepção de algumas palavras ou expressões não usadas em Portugal

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