A ousadia de olhar a melancolia nos olhos

A melancolia “dá alma” à pessoa ou inspira-a, porque a alma só ganha vida se for capaz de manter viva a chama de emoções opostas sem extinguir nenhuma delas.

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"Para conservarmos a melancolia num estado saudável, temos de começar por nos pacificar com a mesma" Andrew Beatson/pexels
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A melancolia, descrita como uma tristeza sem causa concreta, é um sentimento universal que, desde que o mundo é mundo, faz parte da humanidade. Ao longo dos séculos e em todas as culturas, este sentimento sempre ocupou um lugar no espectro dos sentimentos humanos. Enquanto parte integrante da condição humana, a melancolia é um estado de espírito que tem origem na nossa consciência da passagem do tempo, da transitoriedade da vida e da perda. Até aqui, nada de novo. O que mudou, então, na nossa forma de encarar e lidar com os sentimentos melancólicos?

A alteração que se verifica reside na crescente impreparação do ser humano para lidar com os estados de espírito sombrios. Desde o início dos tempos, o ser humano teve de enfrentar perdas, deceções e contratempos, mas tem-se a impressão de que, na atualidade, estamos mais mal preparados do que nunca para lidar com os acontecimentos considerados negativos, reflete a escritora e filósofa Joke J. Hermsen, na obra Melancolia em tempos de perturbação.

Esta autora procura explicações para a crescente impreparação de um elevado número de pessoas para fazerem face a uma perda, colocando diversas hipóteses para explicar esta tendência. Haverá menos lugar para os sentimentos ambivalentes porque queremos sentir-nos continuadamente felizes? Será que se deve à excessiva valorização do individualismo na nossa sociedade? Ou será que abandonámos os meios que utilizávamos para enfrentar as nossas perdas e ajudar o próximo a superar as suas, de modo a sermos capaz de transformar a dor de uma perda numa melancolia de muitas tonalidades?

Para aprendermos a lidar com os sentimentos considerados negativos — como a melancolia, a tristeza, a deceção ou a frustração —, é necessária uma aprendizagem gradual, desde a infância, que inclua a observação desses sentimentos nas figuras de referência das crianças, bem como a vivência desses estados de espírito, enquanto experiência reconhecida e amparada pelos adultos. Acontece que vivemos numa sociedade que exibe e valoriza comportamentos exteriores de felicidade, renegando e ocultando os sentimentos melancólicos, conotando-os com algo de negativo que devemos a todo o custo evitar e, se tal não for possível, que devemos rapidamente ultrapassar, de modo a retomarmos, sem demora, o registo da felicidade.

No entanto, o desejo de nos sentirmos continuadamente felizes, evitando os sentimentos considerados negativos, em vez de constituir um passaporte para a felicidade, parece contribuir, pelo contrário, para nos tornar mais frágeis, desprotegidos e impreparados para lidar com a dor, tal como defende a psicóloga e analista junguiana Helena Santos: “Há uma verdadeira obstinação dos pais em livrar os filhos do sofrimento, gerando atitudes protetoras e a fantasia de poder mantê-los à margem de qualquer dor. Mas, quanto mais os protegem, mais os seus filhos se tornam criaturas frágeis, desprotegidas e impreparadas para enfrentar os desafios da vida”, que incluem sempre, em algum momento das nossas trajetórias pessoais, uma inevitável dose de sofrimento.

A dissolução dos vínculos sociais, a perda de histórias comuns, a extrema individualização e a crescente anonimização digital são outros dos fatores que a Joke J. Hermsen elenca para explicar a crescente vulnerabilidade do ser humano. Na sua perspetiva, podemos estar a contribuir para o enfraquecimento das estruturas eficazes para evitar que os sentimentos melancólicos, que fazem parte da nossa condição humana, deem lugar a uma depressão.

Além de as instituições que criámos para combater os estados de espírito melancólicos não serem eficazes, cometemos o grave erro de desmontar as estruturas que realmente funcionam, como o espírito solidário, o sentido de pertença a um grupo, o afeto, a reflexão, a serenidade, o desenvolvimento pessoal, a arte, a criatividade e a atenção psíquica baseada na empatia. Assim, nas palavras desta autora, “há que criar de novo espaços para a deceção, o medo e a tristeza na nossa sociedade, fortemente medicalizada e comercializada, para aprendermos a encarar as perdas e não nos deixarmos arrastar por sentimentos sombrios”.

Para conservarmos a melancolia num estado saudável, temos de começar por nos pacificar com a mesma, considerando-a enquanto elemento indissociável da condição humana. Há que aceitar — em vez de negar — a dualidade dos estados sombrios e, em concreto, o lado positivo dos mesmos, revitalizando, segundo Hermsen, a “relação que, desde a Antiguidade, era estabelecida entre a melancolia e a criatividade, inclusive a genialidade, sempre e enquanto formos capazes de manter à distância, com esperança, vitalidade, coragem e realismo, os sentimentos de pesar”.

É o mesmo que dizer que temos de reaprender a integrar a melancolia na alma humana, desenvolvendo a sua conexão com a sensibilidade e a criatividade, acolhendo-a enquanto força propulsora para explorar novas possibilidades e para inspirar os próximos passos das nossas vidas. A melancolia “dá alma” à pessoa ou inspira-a, porque a alma só ganha vida se for capaz de manter viva a chama de emoções opostas sem extinguir nenhuma delas. A variante saudável da melancolia implica um aumento da sensibilidade e tem um matiz agridoce.

“Temos de nos atrever a olhar a melancolia nos olhos e de a acolher como como mais um elemento de tudo o que compõe o nosso agora”, refere Joke J. Hermsen. Nas palavras de Rainer Maria Rilke, em Cartas a um jovem poeta, “não devemos tentar silenciar, reprimir ou anestesiar a nossa melancolia. Temos de encontrar uma forma de viver com ela e de lhe prestar a devida atenção. Quanto mais tranquilos, pacientes e abertos nos mostrarmos face à nossa melancolia, mais profundo e inevitável será o aparecimento de alguma novidade no nosso interior. Porque a essência da melancolia é o anseio do assombro e da mudança, que se prepara a partir do silêncio”. De acordo com a mencionada filósofa, só desta forma “seremos capazes de aceitar e transformar as perdas e mudanças com que nos vemos confrontados na vida num novo começo”.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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