Juiz de instrução liberta todos os arguidos detidos no caso da Madeira
Ex-presidente do Funchal e dois empresários soltos após três semanas de cativeiro, por não existirem indícios, “e muito menos fortes”, da prática de crimes. Ministério Público vai recorrer da decisão.
Após três semanas de detenção, o ex-presidente da Câmara do Funchal e os dois empresários suspeitos de pertencerem ao “polvo” da Madeira foram libertados pelo juiz de instrução, que entendeu não se justificar manter em cativeiro Pedro Calado, Avelino Farinha e Custódio Correia. O Ministério Público vai recorrer da decisão.
Avelino Farinha é líder do grupo de construção AFA, e Custódio Correia é o principal accionista do grupo ligado à construção civil Socicorreia. Os investigadores suspeitam de que, antes de dirigir a autarquia do Funchal, quando ocupava o cargo de vice-presidente do Governo Regional da Madeira, Pedro Calado favoreceu estes interesses privados em conluio com o presidente do governo regional, Miguel Albuquerque, igualmente arguido. Antes de ingressar na política, Calado geria o grupo AFA.
Para o juiz de instrução Jorge Bernardes de Melo, não existem neste momento indícios, “e muito menos fortes indícios”, de algum dos três arguidos ter praticado os crimes que lhes são assacados pelo Ministério Público – corrupção, tráfico de influência, recebimento indevido de vantagem, participação económica em negócio e branqueamento de capitais. Razão pela qual ficam sujeitos à medida de coacção menos gravosa, o termo de identidade e residência.
O Ministério Público analisou dezenas de adjudicações em concursos públicos no valor de várias centenas de milhões de euros. “Suspeita-se de que as sociedades visadas tenham tido conhecimento prévio de projectos e dos critérios definidos para a adjudicação, assim como acesso privilegiado às propostas e valores apresentados pelas suas concorrentes directas nos concursos, o que lhes terá possibilitado a apresentação de propostas mais vantajosas e adequadas aos requisitos predeterminados”, referia uma nota informativa divulgada pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal no final do mês passado, altura em que decorreu uma megaoperação policial destinada à recolha de provas não só na Madeira, como também em vários pontos do continente.
A mesma nota informativa explicava ainda que, nos três inquéritos abertos pelo Ministério Público, estavam também a ser investigados projectos recentemente aprovados na região autónoma ligados ao imobiliário e ao turismo que envolvem contratação pública regional e pareceres emitidos por entidades regionais e municipais. Existem suspeitas não só de favorecimento dos adjudicatários e concessionários seleccionados como também de violação de instrumentos legais de ordenamento do território e de regras dos contratos públicos, “nalguns nalguns casos com o único propósito de mascarar contratações directas de empresas adjudicatárias”.
A instalação de um teleférico no Curral das Freiras, a concessão do transporte rodoviário de passageiros em parte da ilha da Madeira e a construção de um projecto imobiliário na praia Formosa, numa zona defronte do mar em que o Plano Director Municipal do Funchal não permitia edificações, são alguns dos empreendimentos em causa. Diz o Ministério Público que o projecto à beira-mar previsto para terrenos do grupo Pestana e do grupo AVA não terá sido precedido da devida avaliação de impacte ambiental. Os apartamentos dos sete prédios de nove andares autorizados para o Formosa Bay Pestana Residences & CR7 já estão à venda há um ano, em planta.
Outro ângulo de investigação é o alegado pagamento, pelo governo regional, de dezenas de milhões de euros a uma empresa de construção e engenharia a coberto de uma transacção judicial. Terá sido criado um litígio fictício entre as partes enquanto decorriam adjudicações de contratos públicos de empreitadas de construção civil, um tipo de esquema denunciado por um anterior bastonário da Ordem dos Advogados.
No que diz respeito a Miguel Albuquerque, que se demitiu depois de ter sido constituído arguido, o Ministério Público desconfia de que tenha participações no fundo imobiliário que comprou uma quinta do próprio presidente do governo regional — a Quinta do Arco — em 2017 por 3,5 milhões de euros, alegadamente para pagar actos corruptivos. Outro negócio que está sob investigação é a concessão, por ajuste directo, da exploração da Zona Franca ao grupo Pestana — um negócio que o Tribunal de Contas considerou ter violado o princípio da concorrência e que tinha sido gerido por Pedro Calado.
Advogado pede cabeça de Lucília Gago
Estão em causa práticas levadas a cabo desde 2015. Durante as buscas do final do mês passado foram encontrados 20 mil euros em numerário em casa do então ainda presidente da Câmara do Funchal e outros dez mil em casa da sua mãe. E segundo a Polícia Judiciária, numa conta bancária sua ou de familiares seus foram sendo depositados pelo seu motorista, no espaço de três anos, entre 2018 e 2021, um total de mais de 60 mil euros. "O facto de alguém ter dinheiro consigo não é crime", observou, à saída do tribunal esta quarta-feira, o representante legal do líder do grupo AFA, Raul Soares da Veiga. Já o advogado do ex-autarca, Paulo Sá e Cunha, preferiu não dar explicações públicas sobre a origem destas quantias. Vigilâncias da Polícia Judiciária neste processo dão também conta de que em ocasiões em que se deslocou ao continente Pedro Calado usou um automóvel que era propriedade de Avelino Farinha.
Embora lamentem que os arguidos tenham sido sujeitos a um período de detenção tão longo, estes advogados não tencionam desencadear nenhuma queixa contra o Estado português pelo sucedido, nomeadamente no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Já o defensor do arguido da Socicorreia, André Navarro de Noronha, mostra-se menos taxativo a este respeito. Afinal, sublinha, os três suspeitos estiveram submetidos durante três semanas a um regime de detenção que é em vários aspectos pior do que aquele que regula a prisão preventiva: "Não podem ser visitados senão pelo seu advogado e não têm acesso a um pátio de recreio". No fundo, resume, é como se estivessem presos na solitária.
Entretanto, o penalista Manuel Magalhães e Silva, que não está neste processo mas que já foi membro do Conselho Superior do Ministério Público, já veio a terreiro pedir a demissão da procuradora-geral da República na sequência destes acontecimentos. Diz o advogado que a principal dirigente do Ministério Público não tem condições para se manter no cargo e devia dar explicações ao país de viva voz sobre o que sucedeu neste caso, em vez de emitir notas informativas.