Desde 2015 que não havia tanta gente a iniciar tratamento por uso de drogas

Em 2022, estiveram em tratamento na rede pública um total de 24.176 utentes com problemas relacionados com drogas. Desses, 3569 estavam a iniciar o tratamento.

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O ano de 2022 foi o segundo consecutivo em que o número de pessoas que iniciaram tratamento aumentou Matilde Fieschi (Arquivo)
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Desde 2015 que não havia tanta gente a iniciar tratamento na rede pública para problemas relacionados com o uso de drogas. Foram 3596 utentes a começar o processo em 2022, entre pessoas readmitidas e aquelas que pela primeira vez recorreram às estruturas desta rede, precisa o relatório anual A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências, publicado pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e nas Dependências (SICAD). O cenário quanto ao consumo problemático de álcool é semelhante: a dependência do álcool quase quadruplicou em dez anos.

Segundo a análise do SICAD, em 2022, estiveram em tratamento para comportamentos adictivos e dependências (ambulatório) na rede pública um total 24.176 utentes com problemas relacionados com drogas. Quase 3600 iniciaram um processo: 1681 foram readmitidos e 1915 eram novos utentes.

O subdirector-geral do SICAD, Manuel Cardoso, atribui o aumento da procura por tratamento à recuperação da capacidade de resposta após o período mais complicado da pandemia de covid-19. “2022 é ainda a saída e a reorganização dos serviços no pós-pandemia. A recuperação tem de ver com o restabelecimento da capacidade de resposta que, entretanto, foi enviesada durante a pandemia”, explica ao PÚBLICO.

“Fizeram-se intervenções à distância, mas a capacidade de acompanhamento das pessoas foi mais reduzida” nesse período, elucida ainda, para acrescentar: “O esforço último tem sido exactamente o de tentar que as unidades consigam dar resposta o mais possível aos utentes que as procuram.”

Contas feitas, 2022 foi o segundo ano consecutivo em que aumentou o número de pessoas que iniciaram tratamento (mais 11 pontos percentuais em relação a 2021). “À semelhança do ano anterior, o aumento foi mais acentuado nos novos utentes (acréscimo de 13 pontos percentuais) do que nos readmitidos (mais nove pontos percentuais), tal como ocorreu com as descidas em 2020”, descreve o relatório.

Perante estes dados, é possível perceber que o número de novos utentes em tratamento se enquadra nos valores pré-pandemia. O total de utentes readmitidos foi o mais alto desde 2015.

Quanto ao total de utentes em tratamento em 2022 (os referidos mais de 24 mil), foi registado um ligeiro crescimento (mais um ponto percentual), também pelo segundo ano seguido, após as descidas verificadas entre 2017 e 2020. No entanto, este indicador ainda está aquém dos valores pré-pandemia.

Heroína e canabbis

As pessoas em tratamento para problemas relacionados com o uso de drogas eram maioritariamente residentes nos distritos do Porto (21%), Lisboa (20%), Setúbal (10%) e Faro (9%).

A heroína continua a ser a substância principal mais referida pelos utentes que recorreram a tratamento, no ambulatório, em 2022, embora esta proporção venha a diminuir ao longo dos últimos anos. “Nos que iniciaram tratamento no ano, tal ocorreu também com os readmitidos (51%), mas não com os novos utentes, em que, tal como nos últimos dez anos, a cannabis surgiu como a droga principal mais referida (47%), seguida, pelo quinto ano consecutivo, da cocaína (30%)”, refere o relatório.

Em 2022, nas redes pública e licenciada registaram-se 518 utentes internados por problemas relacionados com o uso de drogas em Unidades de Desabituação, representando 51% do total de utentes internados nestas estruturas. Já o número de pessoas internadas em Comunidades Terapêuticas foi de 1565, ou seja, 56% do total de internados nestas estruturas.

Os autores do relatório relatam ainda que a estrutura etária dos novos utentes em tratamento era “bastante mais jovem que a dos readmitidos”. E notam “um envelhecimento dos utentes readmitidos”.

Menos mortes por overdose

O número de mortes por overdose ocorridas em 2022 diminuiu ligeiramente em relação ao ano anterior. No total, os dados do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML) indicam 69 pessoas morreram por este motivo, destacando-se o consumo de cocaína e opiáceos (em 2021, tinham sido 74 as mortes relacionadas com o consumo de drogas).

Apesar do decréscimo do número de mortes face a 2021 (menos sete pontos percentuais), os valores dos últimos dois anos foram os mais elevados desde 2009. No último quinquénio, foram registadas mais overdoses do que no período homólogo anterior, sendo os valores dos últimos cinco anos os mais altos desde 2011”, explicam os autores.

À semelhança do ocorrido nos anos anteriores, na grande maioria destas mortes (91%), foram detectadas mais do que uma substância. A maioria dos óbitos (77%) aconteceu em pessoas do sexo masculino e a idade média foi de 43 anos.

Em termos de consumo geral, a cannabis, a droga mais consumida no país, registou um agravamento continuado do consumo de risco elevado entre os mais jovens, em particular entre os 15-24 anos, que quase duplicou em cinco anos e sextuplicou em dez anos. Por outro lado, houve nos últimos dois anos um aumento da experiência de problemas relacionados com o consumo de drogas entre os jovens de 18 anos.

Ano com mais apreensões

Por sua vez, os indicadores relacionados com a oferta de drogas sugerem a disponibilidade de as substâncias mais consumidas no país com maior potência ou pureza nos últimos anos, uma maior acessibilidade a elas e uma maior circulação de drogas nos mercados.

Não é por isso de estranhar que 2022 tenha sido o ano com mais apreensões das várias drogas nos últimos dez anos. Há mais: as quantidades confiscadas foram das mais altas desse período.

O haxixe foi a substância com o maior número de apreensões (4743). Seguiu-se-lhe a cocaína (2010), a heroína (1252) e a liamba (1026), e, com valores inferiores, o ecstasy (580).

No preâmbulo do estudo, assinado pelo coordenador nacional do SICAD, João Goulão, refere-se que, “apesar das tendências menos positivas, Portugal continua a surgir numa posição favorável no quadro europeu, tanto ao nível dos indicadores relacionados com os consumos e consequências na saúde dos consumidores como em relação à existência de problemas relacionados com drogas na comunidade e sua evolução nos últimos anos”.

E mantêm-se as tendências positivas em relação a doenças infecciosas como a hepatite C e o VIH, apesar da subida nos últimos anos da proporção de novas infecções (VIH+) entre os injectores novos utentes e a persistência de mais diagnósticos tardios (VIH+) nas notificações associadas à toxicodependência.

João Goulão deixa ainda um alerta: “De qualquer modo, na actual envolvente de crise global e consequentes alterações multidimensionais, as questões dos comportamentos adictivos e dependências assumem novos contornos e complexidade, exigindo uma rápida adaptação das estratégias de intervenção e o reforço das parcerias inter e multissectoriais, sob pena de se reverterem os ganhos até aqui alcançados.”

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