Há qualquer coisa que está a falhar no ensino público

Devem valorizar mais o ensino privado, em lugar de o tomarem constantemente como adversário, marginalizando-o (por exemplo, porque é que os manuais escolares gratuitos não contemplam esses alunos?).

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Querida Ana,

Há coisas da minha vida que te tenho de contar, sob risco de depois quereres saber e eu já cá não estar para responder às tuas perguntas. Por exemplo, esta minha memória, pareceu-me de repente muito relevante para a campanha eleitoral de 2024. E por isso aqui vai:

Em setembro de 1975, depois do chamado Verão Quente, matriculei-me no 6.º ano do Liceu Camões (que corresponde ao atual 10.º ano), em Lisboa, e, nesse tempo revolucionário, ninguém se espantou muito quando, a meio de outubro, as aulas ainda não tinham começado. Já os teus avós ficaram mais preocupados quando receberam uma notificação de que eu tinha sido colocada num liceu/escola no Intendente e, cereja no topo do bolo, no turno da noite! Na altura era uma zona com muita prostituição e uma frequência duvidosa.

Vai daí, e com um grande sacrifício porque o orçamento era curto, inscreveram-me no Colégio de São João de Brito, que nesse ano abrira pela primeira vez a porta a raparigas, exatamente para tentar dar resposta à loucura que se instalara no ensino público.

Ora — estás a seguir a história ou já adormeceste? —, na minha nova turma andava também um filho de um deputado do Partido Socialista, um médico brilhante e um político corajoso, com funções ligadas também ao ensino, se bem me recordo. Um dia convidaram o senhor para nos ir falar e responder às nossas perguntas sobre o que se passava no país.

E eu perguntei-lhe, com aquelas indignações típicas de uma adolescente de 15 anos, se lhe parecia fazer sentido que um militante de um partido que era então governo, tivesse o filho numa escola particular, sobretudo numa altura em que a escola pública estava no mais absoluto caos. Ao ponto de nem ter lugar num horário diurno para todos os estudantes.

Não era nada contra o meu colega, coitado, que era óptima pessoa, mas só uma tentativa de levantar uma questão de princípio. Respondeu-me que não via qualquer incompatibilidade. Não me convenceu.

E pelos vistos quase meio século depois continua a não convencer, a avaliar pelo choque que senti ao saber que tanto Pedro Nuno Santos, como a ex-secretária de Estado da Educação, Alexandra Leitão, e agora número 2 do candidato a primeiro-ministro, têm os filhos em escolas particulares. Mais não se lhes ouvindo em público uma palavra de apreço, antes pelo contrário, pelo papel do ensino particular (nomeadamente como lugar de refúgio para os filhos dos políticos que fazem dos outros cobaias das suas reformas e medidas).

Ana, posso pensar neste assunto mais 50 anos, mas suspeito que não vou mudar de ideias.

Sei que andas a correr, sem tempo para estes dilemas éticos que me avassalam, mas diz-me só se te parece que estou a ser excessivamente intolerante?


Querida Mãe,

Conte-me mais histórias! Sei que provavelmente atravessei uma fase em que “era tudo uma seca”, mas juro que já me passou! Acho que por vezes nós, filhos, ficamos com vergonha de perguntar mais coisas porque achamos que já devíamos saber as respostas e que é ofensivo insistir. Por isso sim, contem-nos histórias do vosso passado.

Confesso que não estava à espera de passar de uma história sobre a sua infância para um dilema político-social, mas pronto…. Vamos lá pensar sobre isto! Acho que concordo com a sua indignação aos 15 anos — não foi uma resposta satisfatória, nem na altura, nem agora. Não tenho dados sobre o que se passa em Portugal, mas aparentemente 20% dos professores americanos que trabalham em escolas públicas mandam os próprios filhos para uma escola privada! O que isto nos diz, tal como quando pessoas em cargos públicos ligados direta ou indiretamente à Educação põem os filhos em escolas privadas, é apenas isto: há qualquer coisa que está a falhar no ensino público.

Não se trata de julgar o caso particular de x ou y — que podem ter várias razões específicas para quererem os filhos numa determinada escola —, mas de ser expectável que, pelo menos, reconheçam que as escolas privadas colmatam um vazio (ou vários) para muitos pais. E que se assim é, deviam valorizar mais o ensino privado, em lugar de o tomarem constantemente como adversário, marginalizando-o. Por exemplo, porque é que os manuais escolares gratuitos não contemplam esses alunos?

Pede-se também a honestidade intelectual e a coragem de admitir as falhas do ensino público, que os levam a pregar uma coisa e a fazer outra. E, já agora, convém que expliquem por que é que enquanto governantes não criam as condições para que todos os outros pais possam tomar a mesma opção, apostando, por exemplo, nos cheques-escola. Tema para uma próxima birra!

Beijinhos


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. As autoras escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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