Guia não-ideológico para a habitação em Portugal

O que diferencia hoje a casa de um rico da de um pobre é o mármore da casa de banho, os móveis da cozinha e o código postal. Por imposição legal, hoje é quase impossível construir habitação económica.

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Haverá inúmeras razões para o aumento do custo e para a redução drástica do número de fogos construídos em Portugal nos últimos 20 anos. Dados da Pordata sugerem uma quebra de 500% (de 125.700 em 2002 para 20.156 fogos em 2022). Muitas explicam-se como resultado da conjuntura internacional, como a crise do subprime, a pandemia ou a espiral de inflação dos últimos anos e, por isso, difíceis de atribuir a decisões dos diferentes executivos nacionais.

E a housing crisis não é um tema menos fracturante, por exemplo no Reino Unido, onde o grande debate passa, no limite, pela hipótese de se construir no pristino green belt de Londres, ou começar a densificar e construir em altura nos seus intermináveis subúrbios de row-housing. Nem a Escandinávia ou os Países Baixos, economias tipicamente mais planeadas e socialmente organizadas, escapam ao fenómeno. Porém, o caso de Portugal é comparativamente dramático e há muitos condicionantes e entraves internos cuja resolução está apenas e só nas nossas mãos; nomeadamente, no que toca ao planeamento, aos licenciamentos, à burocracia e à fiscalidade.

O início do milénio viu uma forte contestação aos PDM (Planos Directores Municipais) de primeira geração pelo alegado excesso de capacidade construtiva; o tal país para 40 milhões de habitantes. Essa constatação levou as CCDR (Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional) a pressionarem no sentido contrário e, na revisão seguinte, os PDM criaram fortíssimas restrições à construção, gerando uma enorme escassez de áreas urbanizáveis e consequente escalada de preços dos terrenos. A somar às restrições estatutárias das zonas de RAN (Reserva Agrícola Nacional), REN (Reserva Ecológica Nacional), Parques Naturais e à imensa Rede Natura 2000, juntaram-se-lhes, de forma algo aleatória, as Cartas de Perigosidade dos Incêndios na sequência do flagelo de 2017.

Paralelamente, quer por legislação comunitária, quer por imposições municipais, nacionais ou de lobbying dos diferentes operadores e concessionários, o edifício legislativo que regula os licenciamentos da construção foi crescendo num amontoado inorgânico de leis, regulamentos e portarias, que soma mais de 2500 à data. A tudo se acrescem certificações e certificados, verificações e atestados, fichas técnicas e apólices de seguros, termos de responsabilidade e de idoneidade, planos de saúde e de segurança, numa vertigem burocrática sem precedentes. Até os "pobres" bancos na hora final de conceder o crédito bancário ficam confusos perante a abundância de certificações que acham que devem exigir.

Chegados aqui, verificamos que o que diferencia hoje a casa de um rico da de um pobre é o mármore da casa de banho, os móveis da cozinha e o código postal. Tudo o resto, por estrita imposição legal, é semelhante. Ou seja, é quase impossível hoje construir habitação económica ou a custos controlados, porque o legislador foi maximalista em todas as opções. Exemplos: a rotação de uma cadeira de rodas numa casa de banho acessível a deficientes em Espanha são 1,20m; em Portugal, 1,50m. E ainda nos nossos vizinhos, porque é que a largura mínima dos corredores são 0,90m e em Portugal 1,10m? E porque é que um T3 tem obrigatoriamente de ser ventilado em duas fachadas e as zonas de dormir têm de ser segregadas das zonas sociais? Quem foi o cientista social que chamou a si estas decisões e com que base sanitária ou social? E porque é que em plena era do wi-fi, em Portugal, todos os quartos, salas e cozinhas têm de estar equipados com ficha de Internet e de televisão, como se o nosso desígnio social na transição digital da família passasse por enfiar com as crianças nos quartos a jogar League of Legends? Este último a justificar-se apenas pelo frete do legislador aos operadores de telecomunicações e energia.

Num país rico, como a Suíça, é possível construir um edifício de quatro pisos com apenas um elevador em torno de uma escada aberta (como nós, aliás, construíamos até aos anos 80). Já em Portugal, actualmente, são obrigatórios dois elevadores e a uma escada enclausurada corta-fogo.

E o automóvel, esse ser inanimado de metal e borracha, continua com um lugar central na política de habitação e, seja rico ou pobre, chama a si o mesmo número de lugares por fogo. São dezenas de milhares de metros quadrados de caves de estacionamento construídas com o PRR para dar guarida ao "popó". Será que isto faz sentido para um modelo prospectivo de habitação acessível, quer em termos do tempo e esforço de construção, quer em termos de custo?

Perante isto, que dizer das proclamadas “vias verdes” para os “licenciamentos zero”? O que é isso, perguntam os nossos colegas arquitectos, paisagistas, urbanistas e engenheiros na função pública? Porque é que insistimos na analogia automobilística para algo que é o seu absoluto oposto? Lento, complexo e burocrático. No país das vacas voadoras e da modernização administrativa, não existe um modelo único de submissão dos projectos. Cada plataforma municipal tem diferentes exigências e critérios de medição de áreas cobertas, de caves, balanços e varandas, já para não falar dos casos em que não é sequer possível a submissão electrónica. Fala-se numa plataforma única para breve, financiada pelo PRR. A ver vamos.

O próximo executivo, qualquer que seja a sensibilidade política, deve recolher propostas objectivas e informadas de um grupo alargado de técnicos experientes — sem desprezar aspectos positivos que possam até estar já contemplados no pacote legislativo do novo Código da Construção — e ir ao fundo destas questões, ponto por ponto e reduzir, simplificar, cortar, limitar e resolver. Num modelo, espero eu, minimalista, que permitia às pessoas mais pobres voltarem a conseguir ter casa; não necessariamente a casa perfeita sob os mais exigentes padrões europeus, mas uma casa bem construída e a valores comportáveis para os seus rendimentos.

Como arquitecto, lembro com alguma saudade as cooperativas de habitação que projectámos nos idos anos 90. Como foi possível, há escassos 25-30 anos, entregar dezenas de fogos de qualidade para a classe média que hoje nos parecem de luxo? Parafraseando Charles de Gaulle, a habitação é um assunto demasiado sério para ser deixado aos políticos.

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