França e Alemanha criam fundo comum para investigar proveniência de peças africanas

Projecto apresentado esta sexta-feira em Berlim contará com 2,1 milhões de euros e poderá preparar o terreno para a devolução de objectos conservados nos museus nacionais de ambos os países.

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Mandu Yenu, o trono camaronês conservado no Museu de Etnologia de Berlim David von Becker/ cortesia Museu de Etnologia de Berlim
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Para investigar a proveniência de objectos culturais da África subsariana nas instituições públicas francesas e alemãs, os governos dos dois países acordaram estabelecer um fundo comum de 2,1 milhões de euros, a ser gerido pelo Centre Marc Bloch, anunciou este centro de investigação franco-alemão sediado em Berlim, que apresentou esta sexta-feira as linhas gerais do projecto numa sessão de lançamento na qual participaram representantes dos ministérios da Cultura alemão e francês.

Com um orçamento anual de 720 mil euros e uma duração prevista de três anos, o fundo terá como missão financiar projectos de investigação propostos por consórcios que incluam parceiros franceses, alemães e subsarianos. Um Conselho Científico, composto por nove reconhecidos especialistas franceses, alemães e africanos, terá a responsabilidade de definir o programa do fundo e avaliar e seleccionar as propostas de investigação.

Coube a um destes conselheiros, o filósofo senegalês Souleymane Bachir Diagne, que actualmente dirige o Instituto de Estudos Africanos na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, abrir esta sexta-feira a sessão de apresentação do projecto, no Centre Marc Bloch, com uma conferência inaugural seguida de debate com o público.

Na mesma sessão, a ministra alemã da Cultura, Claudia Roth, citada pelo jornal inglês The Guardian, observou que “o arranque deste programa mostra que quando a cooperação atravessa fronteiras e liga a ciência e a cultura, são possíveis projectos tão importantes como este, muito necessários em tempos tão desafiantes como estes em que vivemos”.

A coordenadora científica do fundo, Julie Sissi, investigadora do centro berlinense, salientou a natureza “experimental” deste fundo e precisou que a intenção é criar uma grelha de critérios suficientemente ampla para que tanto possam candidatar-se projectos de grande envergadura como outros mais pequenos.

40.000 peças dos Camarões

Embora o fundo tenha latitude para apoiar investigações relativas à proveniência de objectos culturais com origem em toda a África subsariana, é de esperar que seja dada prioridade a ex-possessões da França e da Alemanha, como o Togo ou os Camarões, dois países onde os colonizadores alemães foram substituídos pelos franceses durante a Primeira Guerra Mundial.

Philip Oltermann, editor de cultura europeia no Guardian, lembra que a França devolveu, em 2021, 26 artefactos ao Benim, mas que os processos de restituição têm estado parados desde então, e que a tentativa de fazer adoptar uma lei de restituição de bens culturais saqueados no estrangeiro foi bloqueada pela oposição.

Já depois disso, no final de 2022, a fundação alemã Ernst von Siemens financiou o lançamento da primeira base de dados que reúne o extenso conjunto de objectos conhecidos como Bronzes de Benim, peças comemorativas criadas a partir do século XIII pelos edos, descendentes do povo que fundou o império do Benim. Levadas pelos ingleses dos palácios reais da cidade do Benim, na actual Nigéria, a maior parte teve como destino o Museu Britânico, mas outras acabaram noutros países, como a Alemanha, que no ano passado restituiu ao governo nigeriano 21 desses artefactos.

Oltermann argumenta que esta devolução de bens que tinham sido saqueados por terceiros representa um processo relativamente simples, quando comparado com as questões que poderá levantar a restituição dos artefactos saqueados pelas forças germânicas nos países que a Alemanha imperial colonizou no final do século XIX, e até à Primeira Guerra Mundial.

Um projecto de mapeamento de objectos do património cultural camaronês conservados em museus alemães, publicado em Junho de 2023 com o título O Atlas das Faltas, identificou mais de 40.000 artefactos, dos quais quase 9000 estão na colecção do Linden Museum, em Estugarda.

O trono de Bamum

Um dos mais notáveis objectos de origem camaronesa conservados na Alemanha é o Mandu Yenu, um impressionante trono real do antigo reino de Bamum, que está no Museu de Etnologia de Berlim. Composto de um assento e de uma plataforma onde assentavam os pés do monarca, é totalmente esculpido em madeira e ricamente ornado com contas de vidro de proveniência europeia - Mandu Yenu significa “rico em contas” - e conchas coloridas oriundas do Oceano Índico.

Exemplo notável da arte cortesã bamum da segunda metade do século XIX, é também uma peça cuja eventual restituição pode levantar questões complexas, já que a versão oficial é que foi oferecido pelo rei Ibrahim Njoya ao imperador Guilherme II, em 1908, como agradecimento pelo apoio germânico numa expedição conjunta contra um reino vizinho.

Sabe-se, todavia, que o então Museu Real de Etnologia de Berlim vinha desenvolvendo esforços desde 1905 para conseguir o trono, do qual o rei mandou fazer uma cópia, que continuou a usar depois de ter dado o original ao imperador alemão. Uma história que levanta várias questões, algumas delas hoje assumidas pelo próprio Museu de Etnologia na sua descrição da peça: “Pode um presente dado sob as desiguais relações de poder do colonialismo ser alguma vez considerado uma dádiva?”

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