Segurança em Portugal: entre a realidade e a percepção mediática

É na rua que se percebe como as pessoas estão a viver, não na Internet. E, nas ruas, as pessoas queixam-se da insegurança e de não verem polícia em lado nenhum.

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"É na rua que se percebe como as pessoas estão a viver, não na Internet" Matilde Fieschi/Arquivo
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Naquela estação de televisão que toda a gente diz que não vê, mas que é a mais vista no cabo e que pontualmente já foi mais vista que os canais generalistas, descubro crimes graves quase todos os dias. Coisa estranha num país que em 2023 figurava na sétima posição do ranking dos países mais seguros do mundo. À "nossa" frente, Islândia (1.º), Dinamarca (2.º), Irlanda (3.º), Nova Zelândia (4.º), Áustria (5.º) e Singapura (6.º). Atrás, países como Japão, Suíça, Canadá ou Finlândia. O feito português é "vendido" à boca cheia pelos sucessivos governos, organizações turísticas nacionais, operadores turísticos, empresas do ramo hoteleiro, companhias aéreas, agências imobiliárias, enfim, por todos aqueles que beneficiam diretamente do turismo. Não sou ingénuo: o turismo beneficia-nos a todos e não tenho nada contra.

A elaboração do Índice Global da Paz (Global Peace Index) baseia-se em três itens principais: 1. Grau de militarização; 2. Conflitos domésticos e internacionais; 3. Nível de proteção e segurança da sociedade em geral — que se desdobram em 23 indicadores. Eis alguns: despesas militares; volume de importação e exportação de armas e volume de armas nucleares; número, intensidade, duração e mortes por conflitos internos e externos; nível de criminalidade; número de homicídios por 100.000 pessoas; nível de crimes violentos; número da população presa por 100.000 pessoas e número de oficiais de segurança e policiais por 100.000 pessoas.

Portugal tem folha limpa na maioria dos indicadores. E isso é bom. Aliás, é fantástico. Nada há de mais tranquilizador do que viver em liberdade num país seguro e onde há hospitais que nos tratarem da saúde quando precisamos — as instituições de saúde não são um dos indicadores do Índice Global da Paz. Deviam?

São muitas as vezes que a tal estação a que me referi no início falha no rigor das suas peças. E também alimenta o "diz que disse". E gasta horas a fio a filmar terrenos baldios e curso de rios. E coloca jornalistas (jornalistas?) mal preparados a fazerem vivos intermináveis a repetirem o que sabem e o que não sabem vezes sem conta, etc., etc.. Mas sempre que vejo um noticiário nessa estação fico com a forte sensação de que Portugal não é um país assim tão seguro ao nível de proteção e segurança da sociedade em geral, um dos três itens principais Índice Global da Paz.

Não comparando com outros países (não vivo noutros países, vivo aqui), apercebo-me naquela estação de algo que não me apercebo em igual quantidade e importância em nenhuma das outras televisões generalistas: o crime abunda em Portugal e os crimes de agressão atingem principalmente idosos e mulheres. Já sei, o tal canal só vive do crime. Concordo. Parcialmente. O tal canal vive do crime, certo, mas é o crime da vida real, o que sangra, o que obriga a chamar ambulâncias e o INEM. Crime de esquina, facadas nas tabernas e bares, espancamentos nas discotecas e pancada "entre quatro paredes", aquele tipo de crime que ainda é tabu e que mata mais em Portugal do que qualquer outro tipo de crime – 18 pessoas morreram no ano passado até o último trimestre em contexto de violência doméstica, 14 eram mulheres.

Ainda esta semana, durante uma caminhada, parei para ouvir dois senhores com mais de 70 anos:

— Isto é preciso cuidado. Agora nesta idade, se vem um chavalo de 20 e tais anos, dá-nos um encontrão e leva o que quiser —, disse um deles.

— E se for só um encontrão já vamos com sorte —, acrescentou o outro.

Eu anuí e absorvi. É na rua que se percebe como as pessoas estão a viver, não na Internet. E, nas ruas, as pessoas queixam-se da insegurança e de não verem polícia em lado nenhum. Não acredito na utopia de ter "um polícia em cada esquina", mas não ter nenhum em nenhuma esquina também não será solução. Quem já precisou e chamou um polícia com urgência saberá do que falo.

Há tempos, ouvi um comentador queixar-se de que em Portugal os jornais e televisões dão pouca relevância à política internacional. Não acho que deem pouca atenção. Acho que dão a suficiente. E, quem quiser saber mais tem à disposição imensos jornais (online, por exemplo) e televisões (no cabo) que abordam o tema. Na maioria, são jornais e canais em inglês e francês, mas isso não será um entrave para um comentador tão interessado em política internacional. Mais: tratando-se de jornais online, é possível traduzir o conteúdo sem sair da página.

Muito tempo de antena é, em geral, atribuído aos conflitos internacionais. Relevantíssimo. Não discuto, isso mexe com tudo, desde a economia à segurança global. Mas atenção: uma pessoa morta é uma pessoa morta. Seja aqui, na Ucrânia, na Rússia, em Israel ou na Palestina.

Na semana passada, em dois dias consecutivos em que vi televisão e em que sintonizei o tal canal, descobri que uma senhora de 76 anos foi assaltada e morta às 8h30 da manhã na Amora, que um miúdo de 20 anos foi morto à facada na madrugada de 26 de dezembro (soube entretanto que o presumível autor dos dois crimes foi detido), que uma mulher de 40 anos da Figueira da Foz foi morta à facada de madrugada pelo homem com quem vivia há três anos (a filha da vítima, de 12 anos, dormia sob o mesmo teto) e que, a notícia entrou durante a emissão, uma octogenária foi assaltada e empurrada à porta de casa, na Cova da Piedade, quando colocava a chave na porta, tendo partido o colo do fémur e um braço.

Entretanto, noutros canais, destacava-se o frio de rachar na Irlanda e a Casa Branca, nos Estados Unidos, coberta de neve. Imagem bonita.

Não pretendo fazer a apologia de umas estações de televisão em detrimento de outras – quando se trata de procurar informação, acredito que é melhor beber nas várias fontes à nossa disposição – e muito menos das notícias de sangue face a outras de enorme interesse e valor, mas sim a importância de espelhar a sociedade por inteiro. Todas os meios de comunicação social têm virtudes e defeitos, mas o valor número um, inegociável, deverá ser sempre a honestidade. E isso passa por informar sobre o todo e não por seguir o critério de fazer chegar às pessoas o que se acha que elas querem ou que se acha que elas deveriam querer.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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