Las Vegas dá palco a “médicos” de bolso que fazem exames ao coração
A CES 2024 juntou empresas a usar as câmaras dos smartphones para acelerar o diagnóstico de problemas de saúde — algumas fazem até exames ao coração. Vêm à CES mostrar que não são brinquedos.
Imagine que enquanto lê este artigo está a fazer um exame ao coração. Ou a monitorizar alterações na expressão facial que podem alertar para os primeiros sinais de demência ou de uma crise de ansiedade. Se estiver a ler o artigo no telemóvel, essa realidade pode pertencer a um futuro próximo. Esta semana, vários profissionais de saúde, cientistas e empresas marcaram presença na Consumer Electronics Show (CES), o grande festival de tecnologia de Las Vegas, para falar sobre apps que podem ser usadas como dispositivos médicos, com prescrição, para diagnosticar ou monitorizar problemas de saúde.
A maioria não depende de tecnologia nova, mas de novas formas de usar os aparelhos que as pessoas transportam nos bolsos. É o caso da foneDx, a mais recente interface de programação de aplicações (API) da ElectronRx, uma empresa que nasceu em Cambridge, no Reino Unido, há cerca de seis anos. “Queremos ajudar a desenvolver tecnologia que possa ajudar os sistemas de saúde na Europa, e em todo o mundo, a fazer a triagem de pessoas com problemas cardíacos e pulmonares e a marcar exames quando é realmente necessário. Tudo com os telemóveis que as pessoas já usam”, resume ao PÚBLICO o fundador, Bipin Patel, doutorado em Engenharia Biomédica, na banca da ElectronRx na CES.
“O nosso foco são dois dos principais órgãos do corpo humano: o coração e os pulmões", continua Patel. "Sempre que fazemos uma consulta de rotina, os médicos vêem o nosso batimento cardíaco e ritmo respiratório. Mas muitas pessoas só percebem que têm problemas demasiado tarde, porque evitam ir ao médico ou não conseguem fazer os exames de que precisam devido às longas listas de espera.”
Apps criadas com a foneDx podem servir como um sistema de triagem inicial ao analisar o ritmo cardíaco e respiratório das pessoas através de sensores que já estão disponíveis no telemóvel. Por exemplo, os sensores nas câmaras. Um dos principais sistemas, explica Bipin Patel, baseia-se em fotopletismografia (PPG, na sigla inglesa). É a mesma tecnologia que é usada por relógios inteligentes que medem o batimento cardíaco através da forma como a pele absorve e reflecte luz em função do fluxo sanguíneo.
“Isto resulta em mudanças na pele que são imperceptíveis ao olho humano, mas que já podem ser captadas com a maioria das câmaras dos telemóveis lançados nos últimos anos e algoritmos de inteligência artificial treinados para isso”, esclarece o fundador da ElectronRx. “Uma das vantagens é que é um diagnóstico passivo. A pessoa só tem de estar a usar o telemóvel.”
A equipa viajou até à CES pela primeira vez na esperança de atrair atenção de reguladores e investidores de todo o mundo. Tal como a inteligência artificial (IA), a saúde digital − que depende quase sempre de algum tipo de IA − é um dos grandes temas do festival de Las Vegas, que é considerado um dos maiores palcos de tecnologia do mundo.
A ambição é partilhada pela equipa da Blueskeye AI, a alguns metros de distância, outra empresa que também está a usar o telemóvel como uma ferramenta de diagnóstico e acompanhamento médico. A abordagem, no entanto, é diferente. Em vez de tentar captar variações no fluxo sanguíneo, a empresa desenvolve apps que usam visão computacional e reconhecimento de voz para perceber o que é que a expressão facial e a voz de alguém revelam sobre o seu estado de saúde.
O processo também envolve interpretação de linguagem natural, que é a tecnologia que permite que máquinas compreendam a língua de humanos. A longo prazo, o objectivo é utilizar a informação para detectar os primeiros sinais de doenças neurodegenerativas, como a doença de Parkinson ou de Alzheimer. A empresa está em fase de testes com o sistema nacional de saúde do Reino Unido (NHS).
Por ora, o sistema ajuda a perceber mudanças de humor ao longo do dia que podem ajudar a monitorizar tratamentos para a ansiedade e depressão. Em 2021, a equipa lançou a Avocado, uma app para ajudar mulheres com mudanças de humor no período pós-parto.
As análises são feitas durante pequenos jogos de computador, com actividades de memória e agilidade, criados para forçar diferentes reacções (entusiasmo, apatia, frustração) nos jogadores. Na CES, a equipa trouxe uma demonstração que põe os utilizadores a explorar as ruas e casinos de Las Vegas.
Tal como a equipa da ElectronRx, o sistema depende das máquinas que ampliam a capacidade de observação de seres humanos. “A nossa tecnologia permite-nos obter informações que seriam impossíveis de detectar a olho nu ou apenas com o ouvido”, explica o presidente executivo Michel Valstar, natural dos Países Baixos, que dá aulas sobre a compreensão automática de comportamento humano na Universidade de Nottingham, no Reino Unido. Foi lá que começou a desenvolver a BlueSkeye.
“Parece um conceito simples, mas é um desafio. Em parte porque a cara de todas as pessoas é diferente e é preciso perceber a melhor informação para captar. Para o nosso sistema de IA funcionar, precisamos de obter muitos dados sobre problemas de saúde mental e doenças neurodegenerativas. E queremos fazê-lo de forma ética e privada”, completa Anthony (Tosh) Brown, director de tecnologia da BlueSkeye.
Este é um dos motivos para a BlueSkeye e a ElectronRx trabalharem com reguladores e instituições governamentais, como a NHS, no Reino Unido, e a American Healthcare, nos EUA, para a realização de ensaios clínicos.
“A regulamentação é um dos grandes desafios”, admite Valstar, da BlueSkeye. No entanto, a empresa descarta a possibilidade de desenvolver a ferramenta sem o envolvimento dos responsáveis de saúde. É uma característica comum entre várias empresas a apresentar projectos de saúde digital da CES que destacam nas respectivas bancas as certificações ISO 13.485. Este é o padrão internacional que estabelece requisitos para sistemas de gestão da qualidade em organizações que estão envolvidas na fabricação de dispositivos médicos.
“Existe uma grande variedade de ferramentas digitais, incluindo apps para o consumidor e tratamentos digitais de nível clínico, mas nem todas são criadas da mesma forma. Os níveis de rigor em matéria de ciência clínica, segurança, qualidade, privacidade e protecção são muito diferentes”, nota Jenna Carl, directora clínica na Big Health, outra empresa a desenvolver soluções digitais para combater problemas como a ansiedade e insónias. “A indústria precisa de trabalhar para equipar os consumidores com melhores ferramentas para ajudar a determinar quais as intervenções que lhes serão úteis.”
“Não somos empresas de bem-estar. Muitas empresas prometem resolver todos os problemas de saúde com sensores e vendem a tecnologia a consumidores sem fazer testes rigorosos que provam como funcionam. É o que as distingue de uma empresa de saúde, validada por reguladores”, frisa Bipin Patel, da ElectronRx. “É mais fácil ser uma empresa de bem-estar. Mas uma empresa médica faz a diferença.”
Promessas demoradas
Apesar de o conceito de “software médico” existir desde os anos 1960, só na última década é que se começou a falar em programas informáticos que são, por si sós, dispositivos médicos. Foi em 2013 que o Fórum Internacional de Reguladores de Dispositivos Médicos (IMDRF, na sigla inglesa) se juntou para harmonizar os requisitos regulamentares para software com fins médicos ao nível global.
Parte da razão é a evolução tecnológica dos dispositivos, com câmaras cada vez melhores e processadores capazes de suportar programas de inteligência artificial. “Parece que estamos a ouvir as mesmas promessas há anos. É um processo. As ideias estavam lá, mas agora chegámos a um ponto em que a tecnologia é robusta o suficiente”, detalha Jessica Boothe, a directora de investigação da Consumer Technology Association (CTA), a organização por detrás da CES, numa conversa com o PÚBLICO no arranque da feira.
Exemplo desta evolução tecnológica é o facto da Dassault Systèmes estar a entrar na área da saúde. A gigante multinacional francesa, que é responsável por programas de design 3D usados para criar produtos que vão desde os aviões da Boeing às latas de Coca-Cola, começou a mapear órgãos do corpo humano. Os gémeos digitais do coração, olhos e cérebro foram um dos destaques da empresa nesta edição da CES. Devem ser usados para a primeira etapa de ensaios clínicos em todo o mundo, antes do recrutamento de voluntários humanos.
A norte-americana Humetrix é outro exemplo: a empresa está a usar os desenvolvimentos em IA para criar um sistema que “traduz” medicamentos. A ideia é que os profissionais de saúde e farmacêuticos possam facilmente perceber a composição, finalidade e dose dos medicamentos usados por pessoas que vêm de outros países.
Várias destas inovações dependem de apoios governamentais. A missão da ElectronRx e da BlueSkeye não é vender a tecnologia aos consumidores, mas introduzi-las nos sistemas de saúde de diferentes países. “Vejo este tipo de tecnologia a fazer parte da oferta de uma app de saúde nacional, como a NHS no Reino Unido ou o equivalente em Portugal [SNS]. Não é um brinquedo. Estes sistemas podem ser prescritos como medicamentos. É algo que pode salvar vidas”, conclui Bipin Patel. Quanto a privacidade, a informação fica nos dispositivos das pessoas e apenas é partilhada, sob autorização, com profissionais de saúde.
Ambas as empresas esperam conseguir ter produtos prontos até ao final de 2025.
Além de apps de saúde, as novidades da CES na área da saúde incluem dispositivos que fundem óculos e aparelhos auditivos num só, e sistemas de monitorização de glicose, não-invasivos, para pessoas que não são diabéticas mas querem saber mais sobre como o corpo reage aos picos de açúcar no sangue.
O PÚBLICO viajou a convite da Consumer Technology Association (CTA), a organização responsável pela CES