Dahdoud perdeu mais um filho
Dois jornalistas foram mortos por Israel em Gaza. Um deles era o filho do chefe de delegação da Al-Jazeera que já tinha perdido a mulher, dois filhos e um neto.
“Espero que o sangue derramado pelo meu filho e que o sangue derramado até agora neste massacre seja o último sangue derramado aqui”, Wahel Dahdoud
Wahel Dahdoud precisa de um coração enorme para albergar a dor que vai sofrendo nos bombardeamentos israelitas e continuar a noticiar o que se vai passando na Faixa de Gaza. Não se trata só de ver a destruição e a mortandade à sua volta, aquela que todos os dias vai relatando através do canal árabe da Al-Jazeera, mas a outra, a mais próxima, a que o atinge pessoalmente.
Depois de perder a mulher, um filho de 15 anos, uma filha de sete anos e um neto num bombardeamento à casa onde estavam a viver, este domingo, o chefe da delegação do canal de notícias pan-árabe em Gaza voltou a chorar a morte de um filho: Hamza Dahdoud, de 27 anos, que também trabalhava na Al-Jazeera, foi morto, junto com Mustafa Thuria, um videógrafo a trabalhar para a AFP, num ataque israelita ao carro onde seguiam.
Ninguém em Gaza está a salvo dos bombardeamentos. Não há onde esconder-se e, na versão israelita de uma resposta proporcional, tudo o que mexe e o que está imóvel é um alvo justificado. Os jornalistas, com os seus coletes à prova de bala azuis, os seus capacetes azuis, a palavra PRESS, em maiúsculas a branco, e o facto de se moverem para relatar o que se está a passar, tornaram-se um alvo azul fácil que nenhuma lei humanitária parece capaz de defender.
Hamza Dahdoud e Mustafa Thuria são os números 108 e 109 na lista de jornalistas abatidos pelo fogo israelita que cai dos céus em Gaza desde 7 de Outubro.
Wahel Dahdoud já sobreviveu a um ataque, quando o automóvel onde seguia também foi atingido, a 15 de Dezembro. Escapou, ferido; o operador de câmara Samer Abudaqa, não – esvaiu-se em sangue durante horas sem direito a socorro, impedido de chegar pelas forças israelitas.
Sobreviveu para seguir contando o que se passa, para engolir as lágrimas em frente à câmara e relatar o que se está a passar num ínfimo pedaço de terra à beira-mar encurralado. Vimo-lo despedir-se do filho agora, como o vimos antes carregar o neto ferido para o hospital onde viria a morrer; vimo-lo de rosto desgarrado a despedir-se da filha de sete anos; vimo-lo rezar junto às campas; o que não vimos foi o joelho em terra, a espinha dobrada, o desespero de quem chegou ao fim do caminho; pelo contrário.
Wahel Dahdoud perdeu mais um filho, como outros pais e mães em Gaza. Muitos pais e mães morreram em Gaza, mas são as mortes dos filhos, essas mortes que invertem a ordem natural das coisas, que mais poderiam quebrar a resistência palestiniana, que mais poderiam levar ao desabafo: “Não podemos mais! Fiquem com tudo!”
Mas é nesse momento em que percebemos que o joelho de Wahel Dahdoud não se dobra sobre o pó dos escombros de Gaza, nesse momento de dor mais profunda, em que o jornalista continua a ser jornalista, em que o jornalista que não devia expressar emoções tem dificuldades em evitar que a voz se embargue e os olhos se marejem, é nesse momento em que o pai de filhos mortos continua a relatar para as câmaras o que se está a passar à sua volta, é, pois, nesse momento, que pensamos que se Israel prosseguir sem olhar a meios para cumprir o seu objectivo de acabar com o Hamas custe o que custar, terá poucos louros para recolher porque das ruínas de Gaza e dos pedaços do Hamas se erguerão muitos dispostos a seguir lutando.
Ninguém se ajoelha sobre os escombros porque até entre as ruínas nascem flores. E haverá muitos pais e mães dispostos a contar essa história de embalar de agora e para o futuro. Mesmo aos seus filhos mortos. Como os de Wahel Dahdoud.