Uma viagem em sete passos ao mundo microscópico para entender a gripe A
Há 14 anos, uma nova estirpe do vírus da gripe mudou o mundo. A pandemia de gripe A este ano está a ser causada pelo mesmo vírus que surgiu em 2009. Agora, volta a lançar o caos nos hospitais. Porquê?
As urgências entupidas de doentes com sintomas respiratórios, recomendações para a toma de vacinas e apelos renovados para a utilização de máscaras. Parece uma viagem aos tempos mais intensos da covid-19, mas com um detalhe que produz um estranho dèja vu com origem em memórias de há 14 anos, com o surgimento de uma nova estirpe do vírus da gripe — o H1N1, causador da gripe A, em 2009.
Esta é a primeira época gripal desde os tempos pré-pandémicos em que a gripe A volta a ser a forma predominante da doença nestes meses mais frios. E desta vez chega numa época em que o sistema de saúde está especialmente fragilizado, ainda a recuperar do impacto da covid-19 e com menos profissionais de saúde para responder a toda a procura.
Afinal, o que se passa? Estão são as sete respostas que deve manter em mente para compreender como pode uma partícula microscópica lançar um país num alvoroço com dezenas de internados, milhares de infectados e uma série de mistérios por resolver, numa altura em que o número de infectados ainda pode vir a aumentar.
Afinal, o que é a gripe A?
Há três tipos de vírus da gripe, uma doença respiratória que afecta sobretudo as vias aéreas, desde a cavidade nasal até aos pulmões, com capacidade comprovada de infectar humanos — os Influenzavirus A, B e C. Este último causa doenças muito ligeiras e é menos frequente, não havendo qualquer registo de uma epidemia de gripe C, explicam os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças, a entidade responsável pela monitorização epidemiológica nos Estados Unidos.
A gripe A é a mais comum dos três tipos. Numa época gripal típica, o vírus da gripe A circula ao mesmo tempo do que o Influenzavirus B, mas o Influenzavirus A é o único capaz de causar epidemias globais de gripe — uma pandemia. Por norma, isso acontece quando uma nova estirpe se desenvolve e encontra uma população com pouca ou nenhuma imunidade.
Para compreender o funcionamento do vírus da gripe A é preciso entrar num mundo microscópico. As respostas estão em duas proteínas que existem na superfície do vírus Influenzavirus A: a hemaglutinina (H), que liga o vírus ao receptor na célula que será infectada; e a neuraminidase (N), envolvida na capacidade de um vírus se libertar das células para continuar a infectar outras.
Os 18 tipos de hemaglutinina e os 11 tipos diferentes de neuraminidase identificados até ao momento podem recombinar-se entre si — normalmente quando duas estirpes infectam o mesmo hospedeiro e trocam informação genética entre si — para causarem centenas de estirpes diferentes do vírus da gripe A. Até ao momento, os cientistas já identificaram mais de 130 estirpes do Influenzavirus A, quase todas em aves selvagens.
Em humanos, as mais comuns são o A(H1N1) e o A(H3N2). Em Portugal, e só nesta época gripal, foram caracterizados geneticamente 30 vírus influenza do subtipo A(H1N1)pdm09 em circulação e cinco vírus influenza do subtipo A(H3N2).
O que está a acontecer este ano?
Enquanto a época gripal passada foi caracterizada pela circulação predominante na estirpe A(H3N2), este ano a predominância pertence ao vírus A(H1N1). Esta já tinha sido a estirpe predominante nas duas épocas gripais anteriores à pandemia (em 2018/2019 e em 2019/2020), em que se registou uma severidade moderada a elevada da actividade gripal.
Este ano, os sintomas desenvolvidos pelas pessoas infectadas parecem ser mais intensos e persistentes, quando comparados com os registos das épocas gripais anteriores. Isso pode explicar-se pelo facto de esta ser a primeira vez que a A(H1N1) é predominante desde a época gripal anterior à pandemia, atingindo uma população que terá perdido parte da capacidade de resposta imunitária.
O vírus A(H1N1) que está neste momento em circulação surgiu a partir do vírus H1N1 que apareceu na Primavera de 2009 e causou uma pandemia de gripe. O A(H1N1) de 2009, que partilha algumas semelhanças com o que causou a pandemia de 1918, continuou a circular sazonalmente nos últimos 14 anos, embora já tenha sofrido alterações genéticas e estruturais. Por isso, outra explicação possível para a maior severidade da doença provocada pela estirpe é que ela tenha sofrido alterações que a tornam mais virulenta (isto é, mais capaz de causar doença mais grave) ou mais transmissível (capaz de se espalhar mais depressa entre as pessoas).
Qual é o ponto de situação em Portugal?
De acordo com o mais recente relatório do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (Insa), publicado na última quinta-feira, 21 de Dezembro, referente à semana entre 11 e 17 do mesmo mês (um novo será publicado esta quinta-feira, 28 de Dezembro), 91,4% dos casos positivos para o vírus da gripe assinalados pela Rede Portuguesa de Laboratórios para o Diagnóstico da Gripe e Vírus Respiratórios eram do tipo A — 877 casos de um total de 960. Em 106 dos casos a estirpe era A(H1)pdm09 (a mesma que causou a pandemia de 2009), o que representa 84,4% dos casos de gripe, e só sete eram da estirpe A(H3).
O mesmo documento especifica que, dos 224 casos de infecção respiratória aguda e síndrome gripal analisados esta época pelo Programa Nacional de Vigilância da Gripe, 14,3% foram diagnosticados com uma gripe. Nos restantes casos, tratava-se de doenças causadas por agentes patogénicos, incluindo 36 casos (16,1%) de infecção pelo SARS-CoV-2 e 16 casos (7,1%) de infecção pelo vírus sincicial respiratório. Mas, dos 32 casos diagnosticados com uma infecção pelo Influenzavirus, 96,9% eram do tipo A e só eram do tipo B. Na semana de 11 a 17 de Dezembro, dos 16 casos de infecção respiratória aguda e síndrome gripal identificados, metade era causada pelo vírus da gripe e nenhum pelo vírus da covid-19.
Como posso saber se tenho gripe A ou outro tipo de gripe?
O único mecanismo que permite saber com certeza que tipo de gripe e de estirpe se tem é a realização de análises laboratoriais. Os testes PCR, os mesmos que eram utilizados durante a pandemia de covid-19 para diagnosticar uma infecção pelo vírus SARS-CoV-2, também podem ser adaptados para diagnosticar outras infecções respiratórias, como a gripe.
Mas o desenvolvimento de alguns sintomas com características especiais pode ajudar um médico a saber, com algum grau de certeza, que doença respiratória tem um paciente e que agente patogénico a está a causar. De modo geral, no entanto, os sintomas da gripe A são semelhantes aos dos outros tipos de gripe, explica a página oficial do SNS24: febre, tosse, nariz entupido, dor de garganta e, em alguns casos, dores corporais ou musculares, dor de cabeça, arrepios, fadiga, vómitos ou diarreia.
Caso desenvolva estes sintomas, procure repousar e ficar em casa — tanto para descansar, como para evitar a transmissão da doença a terceiros. Pode tomar paracetamol em quantidades adequadas ao peso e à idade se tiver febre, utilize soro fisiológico para aliviar a congestão nasal e beba muitos líquidos, sobretudo água. Monitorize a temperatura ao longo do dia e, se estiver a piorar, contacte a Linha de Saúde 24 (808 24 24 24) para receber a assistência médica adequada — em casa, no centro de saúde ou num hospital.
Existe vacina contra esta doença?
Sim. A vacina contra a gripe que está a ser distribuída este ano pela população contempla a maioria dos tipos e estirpes de vírus da gripe que estão em circulação este ano. É assim porque, antes da chegada da época gripal, os cientistas estudaram o comportamento do vírus Influenza no último Outono e Inverno do hemisfério Sul, conseguindo assim prever a tendência da gripe que se poderia esperar quando as estações mais frias, e mais propícias ao surgimento das doenças respiratórias, chegassem ao hemisfério Norte.
O Insa descreveu, no seu relatório da semana 50 deste ano, que “a maioria dos vírus do subtipo A(H1)pdm09 caracterizados até ao momento” — 73%, de acordo com o documento — “apresentam características genéticas semelhantes ao vírus contemplado na vacina contra a gripe da época 2023/2024”. O mesmo não acontece com o subtipo A(H3N2), cujas estirpes em circulação “apresentam um conjunto de mutações genéticas em relação ao vírus vacinal desta época” e, por isso, “são considerados geneticamente diferentes da estirpe contemplada na vacina contra a gripe da época 2023/2024”.
Na dúvida, um dos maiores cuidados na prevenção da gripe, é tomar a vacina, mesmo que afinal venha a ser infectado por uma estirpe que não está contemplada no fármaco. A vacina contém uma versão inactivada do vírus da gripe, mas o organismo humano não sabe disso no imediato: julgando que está sob ataque, desenvolve anticorpos que pretendem neutralizar diferentes estruturas do vírus inactivado. Quando o corpo estiver perante um ataque real pelo vírus da gripe, o sistema imunitário já saberá mais rapidamente que anticorpos produzir contra ele.
Ora, mesmo que essa infecção esteja a ser induzida por um vírus de uma estirpe diferente da que existia de forma inactivada na vacina, basta que tenham algumas estruturas semelhantes entre si e que o organismo produza anticorpos contra elas para que a resposta imunitária ajude no combate ao desenvolvimento da doença. Além disso, e como o organismo tem uma memória imunitária (a capacidade de identificar partículas infecciosas com que já se cruzou no passado), a vacinação numa determinada época gripal pode ajudar a combater infecções que ocorram mais tarde.
Tal como acontece com a covid-19, que obriga a população a tomar reforços vacinais periodicamente, essa capacidade de resposta diminui ao longo do tempo — ora porque o número de anticorpos em circulação decresce, ora porque as estruturas e a informação genética do vírus se alteram. Por isso é que é importante reforçar a vacinação contra a gripe todos os anos: o agente patogénico causador da gripe é altamente mutável, fintando facilmente o organismo de um ano para o outro, e a vacinação compensa a perda de vantagem do organismo humano contra o vírus.
A vacinação não é apenas uma estratégia de protecção individual contra os efeitos de uma infecção pelo vírus da gripe: ao servir de travão ao avanço do agente patogénico, até o eliminar por completo, diminui também a sua capacidade de replicação no organismo — e, por conseguinte, a transmissibilidade para outras pessoas (normalmente através de partículas expelidas durante a fala, a tosse e a respiração) também decresce. Ou seja, a vacinação também ajuda a impedir a transmissão do vírus de pessoa para pessoa.
Como é que o sistema de saúde está a responder?
Os serviços de urgência hospitalares estão a ter dificuldade em acomodar toda a procura de acompanhamento clínico que tem surgido nos últimos dias. Na época 2023/2024, desde a semana 40 de 2023 (2 a 8 de Outubro), os laboratórios da Rede Portuguesa de Laboratórios para o Diagnóstico da Gripe e Outros Vírus Respiratórios, nos hospitais, notificaram perto de 28 mil casos de infecção respiratória, dos quais pouco mais de 2600 eram gripe.
Na semana entre 11 e 17 de Dezembro, as 21 unidades de cuidados intensivos que enviaram dados ao Insa registaram sete internamentos de pessoas com gripe — duas com 35 a 44 anos, outras duas com 45 a 54 anos, duas pessoas entre os 75 e os 84 anos de idade e um doente com 85 anos ou mais. Seis dessas pessoas tinham doença crónica e estavam aconselhadas a tomar a vacina contra a gripe sazonal, mas só quatro tinham seguido a recomendação.
De Outubro até à semana passada, foram reportados 26 casos de gripe pelas unidades de cuidados intensivos que colaboram na vigilância — o mais jovem com 35 a 34 anos e os mais velhos (dez casos) com 65 anos ou mais. A esmagadora maioria (22) sofria de uma doença crónica e só três destes doentes não tinham recomendação directa para tomar a vacina contra a gripe. Mas, desses, só nove estavam vacinados.
Quanto aos internamentos nas enfermarias que colaboram com a vigilância do Insa, e desde o início da época, foram reportados 32 casos de gripe, metade dos quais pessoas com 65 anos ou mais e 13 em idade pediátrica. Do total de casos, 19 tinham uma doença crónica subjacente e 20 tinham recomendação para vacinação contra a gripe sazonal. Quinze estavam vacinados.
A afluência às urgências, mesmo por doentes que não desenvolvem quadros clínicos tão severos, está a entupir os serviços hospitalares, que viram os tempos médios de espera a disparar nas últimas 48 horas. No Hospital Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra), na última terça-feira, realizaram 881 atendimentos em 24 horas — o número mais elevado de sempre naquela instituição de saúde, que abriu em 1995, e 200 atendimentos acima da média para esta época do ano. A previsão de espera para quem fosse avaliado com uma pulseira amarela na triagem chegou a ser de 18 horas.
O que devo fazer para evitar a gripe A?
A estratégia é a mesma utilizada para outras doenças respiratórias sazonais e o seu sucesso foi comprovado durante a pandemia de covid-19: a etiqueta respiratória é a chave para evitar a gripe A ou qualquer outra forma de gripe. Pondere a utilização de máscara respiratória em espaços fechados e onde se reúnem muitas pessoas, evite deslocações desnecessárias, mantenha-se saudável com uma alimentação equilibrada e a prática de exercício físico. E vacine-se.