Oração ao sono

Jamais soube se era dia ou noite no quarto da minha avó. Era um espaço sem tempo, sem meteorologia. Um templo de adoração ao sono cheio de robes, cremes, cobertores, pantufas, aquecedores, chás.

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"Na minha família ou se está a dormir, ou se está a acordar" cottonbro studio/pexels
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Cresci numa família devota do sono.

Quando dormia em casa de outras pessoas, o desrespeito que elas demonstravam pela entidade que cresci a adorar, feria-me. Casas onde pais entravam ao fim de semana nos quartos dos filhos e lhes corriam os estores. Casas onde se batiam entusiásticas palmas matinais. Aspiradores que empurravam as portas e que vinham na minha direção, prontos a aspirar-me a alma.

Na minha família havia um respeito bíblico em volta do estar a dormir e uma fatalidade em relação ao tema semelhante à que se tem com a morte. Lembro-me de ligarem para minha casa com assuntos urgentes e de eu responder “A minha mãe está a dormir”, que era sinónimo de: “É impossível.”

Os olhares que os adultos lançavam às crianças que os tinham acordado eram mortíferos.

Se alguém estava a dormir, passávamos pelos corredores com sussurros de igreja, evitava-se o uso de secadores e de varinhas mágicas, engoliam-se as tosses.

Nas férias, via a minha avó e tias a prepararem o quarto para dormir com a determinação de raptores que preparam uma cave para esconder reféns. Os estores eram lacrados até à última fresta. Depois fechavam-se as portadas e, num gesto sem misericórdia, ainda se corriam as cortinas, para que nenhum raio indesejado de sol ousasse penetrar nos nossos aposentos. Caso uma pequena brecha escapasse, havia fita-cola e chouriços de pano prontos a obstruí-la.

Jamais soube se era dia ou noite no quarto da minha avó. Era um espaço sem tempo, sem meteorologia. Um templo de adoração ao sono cheio de robes, cremes, cobertores, pantufas, aquecedores, chás, penicos, botijas de água quente.

Todos os rituais do sono eram dominados. A cama era feita com o máximo afinco e sem vislumbre do mínimo vinco.

O respeito não se limitava ao sono, mas aos períodos que o antecediam e que lhe seguiam. Por outras palavras, depois do “não incomodes que ela está a dormir”, seguia-se um momento que exigia igual respeito: “Não incomodes que ela está a acordar.”

Na minha família ou se está a dormir, ou se está a acordar.

E acordar não significa abrir os olhos, nem tão pouco levantar-se. Há um período amorfo em que nos movimentamos com gestos lentos, enquanto o café está a ser feito ao mesmo tempo que a reintegração na realidade e em que é fundamental não perturbar.

O acordar da minha mãe estende-se por um longo período, em que nenhuma questão lhe deve ser dirigida, sob pena de obter a resposta: “Agora ainda estou a acordar.”

Como se não bastasse, o sono ainda ocupa um tema central nas conversas. Perguntamos sempre se se dormiu bem, e ouvimos com genuíno interesse a descrição mais aborrecida possível, a de uma noite de sono: “E depois, às quatro da manhã, bebi água.”

Se por acaso não dormimos bem, temos necessidade de comunicá-lo, ou seja, de nos queixarmos disso. Quando alguém nos conta de uma noite mal dormida, sentimos pena e damos as condolências, como se nos falassem de uma doença.

O quarto é a nossa catedral, a cama, o nosso santuário, as histórias de embalar, a nossa eucaristia, o sono, a nossa fé.

"Oremos, irmãos: O sono nosso de cada dia nos dai hoje/ perdoai-nos as nossas ramelas/ assim como nós perdoamos a quem tem martelado às sete da manhã/ e não nos deixeis cair em insónia/ mas livrai-nos do despertador. Ámen."


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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