Guerra entre Israel e o Hamas “tem sido peculiarmente nefasta para os jornalistas”

Já morreram mais jornalistas na guerra entre Israel e o Hamas do que em qualquer outro conflito nos últimos 30 anos. Até ao momento, a Federação Internacional dos Jornalistas registou 68 mortos.

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Já morreram mais de 20 mil palestinianos na Faixa de Gaza Reuters/AHMED ZAKOT
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Hassan Farajallah, Shaima El-Gazzar, Mostafa Bakeer, Mohamed Mouin Ayyash, Farah Omar, Hassouneh Salim, Mohamed Abu Hassira, Assaad Shamlakh, Mohammad Jarghoun. Estes são alguns dos nomes dos 68 jornalistas e outros profissionais que trabalham para meios de comunicação social e que morreram desde que Israel desencadeou uma nova ofensiva na Faixa de Gaza, depois do ataque do Hamas, a 7 de Outubro.

Grande parte destes profissionais morre nas suas casas, com as suas famílias. Ainda assim, organizações como o Comité de Jornalistas, os Repórteres Sem Fronteiras, o Sindicato dos Jornalistas portugueses e a Federação Internacional dos Jornalistas alertam para os jornalistas que morreram enquanto exerciam as suas funções. A maioria destes profissionais era palestiniana e encontrava-se na Faixa de Gaza.

Apesar do número de mortes, ainda existem jornalistas a reportar o que está a acontecer dentro da Faixa de Gaza. Enquanto estes profissionais, retidos no interior do cerco militar, tentam partilhar com o mundo os acontecimentos que os rodeiam, os jornalistas internacionais, impedidos de entrar na zona central desta guerra, acumulam-se do lado de fora e cobrem os sinais do conflito através do exterior. Na maioria das vezes, em território controlado por Israel. Mas nem de um lado nem do outro a segurança é garantida.

A 2 de Dezembro, o jornalista da Antena 1 Luís Peixoto dirigia-se de Jerusalém para Belém quando teve de parar num posto de controlo para conseguir entrar na cidade. Luís Peixoto e o fixer que o acompanhava foram interpelados por uma mulher-soldado. Como habitual, identificaram-se. “Um soldado saiu do edifício, agarrou-me pelo pescoço, encostou-me contra uma grade. Mostrei o meu cartão de identificação e ele continuou a agarrar-me”, descreveu o jornalista ao PÚBLICO. Só quando um superior interveio é que Luís Peixoto foi libertado.

“Não houve qualquer pedido de desculpas”, confessou o jornalista que está habituado a cobrir conflitos militares. “Se fosse palestiniano, o que é que teria acontecido?”, perguntou.

Luís Peixoto está a trabalhar na Antena 1 desde 2017 Paulo Pimenta
O jornalista acompanhou a Guerra na Ucrânia e cobriu o conflito militar israelo-palestiniano durante as primeiras semanas de Dezembro Paulo Pimenta
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Luís Peixoto está a trabalhar na Antena 1 desde 2017 Paulo Pimenta

Luís Peixoto também assistiu a um outro episódio de violência, enquanto cobria uma manifestação, em Jerusalém, onde colonos israelitas reivindicavam o controlo do Monte do Templo. “Uma jornalista alemã foi agredida à minha frente [pelas autoridades israelitas]. Foi empurrada, puxada e acabou por cair, partiu a cana do nariz e levaram-na para o hospital”. Poderá dizer-se que “faz parte”, disse. “Mas não deveria ser assim...”

Esta guerra tem sido “particularmente nefasta para os jornalistas”, afirmou o jornalista, que esteve em Israel entre os dias 1 e 17 de Dezembro. Para Luís Peixoto, “há que perceber que os ânimos estão muito exaltados e que as acções das forças policiais e militares, por vezes, não são as mesmas se se estivesse num cenário normal”.

A 15 de Dezembro, o fotojornalista da agência estatal turca Anadolu, Mustafa Alkharouf, foi hospitalizado depois de ter sido atacado por um grupo de polícias israelitas, no bairro de Wadi al-Joz, em Jerusalém. O ataque foi filmado e transmitido pela CNN turca.

Os principais suspeitos de agredirem o fotojornalista foram suspensos pela polícia. O Ministro da Segurança Nacional de Israel, Itamar Bem-Gvir, afirmou na sua página na rede social X, que estes trabalhadores “não deveriam ser julgados sob condições laborais”. Itamar Bem-Gvir deu ainda instruções para que estes polícias fossem novamente reintegrados, no final dos nove dias de suspensão, tal como foi partilhado pelo meio de comunicação The New Arab.

A 16 de Dezembro, também o jornalista Mohammed Balousha foi baleado numa coxa, quando se preparava para regressar a casa depois de fazer uma reportagem sobre o corte de comunicações, em Jabalia, no norte de Gaza. Em declarações ao The Washing Post, Mohammed Balousha disse que pensava ter sido atingido por um atirador israelita que se encontrava num prédio perto de si. O jornalista, que trabalhava para o órgão de comunicação Al Mashhad, estava identificado com uma insígnia e com um capacete.

Os jornalistas “têm sido utilizados como alvos”

Também João Fernando Ramos, jornalista da TVI/CNN que esteve no terreno nos primeiros 20 dias do conflito militar, recordou um momento em que a segurança dos jornalistas foi violada. A 13 de Outubro, dois ataques sucessivos mataram o jornalista da Reuters Issam Abdallah, de 37 anos, e feriram mais dois jornalistas da Reuters, dois da Agence France-Presse (AFP) e outros dois da Al Jazeera, enquanto reportavam os confrontos transfronteiriços entre as autoridades israelitas e os grupos armados no Sul do Líbano.

“Ao que tudo indica, foi uma unidade israelita que disparou sobre eles, porque estavam a mostrar uma parte da guerra que supostamente não estava a acontecer. Israel estava a dizer que não estava a atacar o Sul do Líbano e os jornalistas estavam num local em que viam e captavam esses ataques”, referiu João Fernando Ramos.

João Fernando Ramos é jornalista há mais de 30 anos Paulo Pimenta
O jornalista João Fernando Ramos cobriu a guerra entre Israel e o Hamas logo no início do conflito Paulo Pimenta
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João Fernando Ramos é jornalista há mais de 30 anos Paulo Pimenta

A AFP realizou uma investigação de sete semanas, juntamente com a Airwars, uma organização não-governamental que analisa este tipo de situações, e concluiu que “os ataques foram deliberados e direccionados” e que a munição que matou o jornalista tinha origem israelita, não sendo usado por outro grupo que não o Exército.

Estes incidentes ocorreram no exterior da Faixa de Gaza, mas a maior parte dos jornalistas que morreu era palestiniana e estava no interior desta zona. Luís Miguel Loureiro, docente da Universidade do Minho, do Instituto de Ciências Sociais e ex-jornalista, vê nestas mortes “um atentado à liberdade de expressão e de informação”. Os jornalistas “têm sido utilizados como alvos”, afirmou. “Quando estas pessoas são maciçamente mortas, não podemos estar a falar só de acasos. Estes jornalistas não andam lá armados. São civis (…) e atacá-los é um crime de guerra agravado.”

De acordo com a Federação Internacional dos Jornalistas, esta guerra tem sido “a mais mortífera” para os jornalistas desde 1990, momento em que a organização começou a seguir o número de profissionais mortos enquanto exerciam as suas funções. Segundo a organização, em declarações ao The Guardian, as mortes deram-se a um ritmo e a uma escala “sem precedentes”. Em comparação, na guerra na Ucrânia, que foi desencadeada a 24 de Fevereiro de 2022, morreram 12 jornalistas, três este ano.

Os 68 jornalistas mortos no conflito militar israelo-palestiniano representam 72% das mortes registadas pela Federação Internacional dos Jornalistas, sendo que este número contabiliza os profissionais que foram mortos enquanto trabalhavam e enquanto não trabalhavam. Os Repórteres Sem Fronteiras vão mais longe e contabilizam 17 jornalistas mortos enquanto estavam a cobrir a guerra entre Israel e o Hamas.

“Se não tivéssemos imagens do interior da Faixa de Gaza, tudo era mais fácil para Israel”, referiu o jornalista João Fernando Ramos. Sem cobertura, o mundo não assistia aos dois lados da guerra e “Israel não tinha tanta pressão internacional”. “É por isso que temos de levantar suspeitas, questionar e investigar os desaparecimentos e mortes destes profissionais”, acrescentou.

Apagão e liberdade de informação

Dentro da Faixa de Gaza, a par dos bombardeamentos que ameaçam as suas vidas, os jornalistas também se deparam com outros constrangimentos que impossibilitam o exercício das suas funções. O bloqueio criado por Israel tem restringido o acesso da população a água, gás, comida, electricidade, combustíveis e cuidados de saúde. Os cidadãos também têm falhas ao nível das comunicações e Internet — elementos essenciais para que os jornalistas reportem os acontecimentos. Os rádios e os geradores tornaram-se os melhores amigos destes profissionais, que tentam fazer chegar informações ao resto do mundo.

Do lado de lá, os jornalistas internacionais também enfrentam outras limitações ao nível do acesso à informação, porque nem todos os locais do território podem ser visitados. “A Faixa de Gaza tem de ser aberta aos jornalistas internacionais. Todos os pontos onde existem conflitos têm de ser abertos aos jornalistas”, reforçou Luís Peixoto.

Estes impedimentos podem ser justificados por razões de segurança, tendo em conta o número de vítimas mortais. No entanto, também podem ser vistos como uma táctica, tal como notou o jornalista da Antena 1 ao PÚBLICO. “Como sabemos, privar o inimigo da informação é uma das formas de fazer a guerra.”

Texto editado por Ivo Neto

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