Poeta e “peregrino da esperança”, José Tolentino Mendonça é o Prémio Pessoa 2023

“Além das suas funções eclesiásticas e pastorais, José Tolentino Mendonça tem-se destacado no ensino universitário, no ensaio de reflexão teológica filosófica e na poesia”, considerou o júri.

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José Tolentino Mendonça Nuno Ferreira Santos
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O Cardeal D. José Tolentino Mendonça​ é o vencedor do Prémio Pessoa 2023, foi nesta quinta-feira anunciado no Palácio de Seteais, em Sintra, por Francisco Pinto Balsemão, que preside ao júri. O Prémio Pessoa é atribuído anualmente a uma personalidade que “tiver sido protagonista de uma intervenção particularmente relevante e inovadora na vida artística, literária ou científica do país”.

O júri, nesta 37.ª edição, foi ainda composto por Paulo Macedo (vice-presidente), Ana Pinho, António Barreto (cronista do PÚBLICO), Clara Ferreira Alves, Diogo Lucena, Emílio Rui Vilar, José Luís Porfírio, Maria Manuel Mota, Pedro Norton, Rui Magalhães Baião, Rui Vieira Nery e Viriato Soromenho-Marques.

"Além das suas funções eclesiásticas e pastorais, José Tolentino Mendonça tem-se destacado no ensino universitário, no ensaio de reflexão teológica e filosófica e na poesia", refere a acta do júri. "É hoje uma das vozes fundamentais da poesia contemporânea portuguesa e europeia, tendo iniciado uma intensa e extensa carreira literária em 1990, com a publicação de Os Dias Contados, no mesmo ano em que foi ordenado padre na diocese do Funchal."

"Em todos os domínios da notável e diversificada actividade intelectual, José Tolentino Mendonça projecta uma visão do mundo norteada por uma espiritualidade que pretende acolher, compreender e transcender as dilacerações, conflitos e sofrimentos da Humanidade", acrescenta o júri. "Ele protagoniza uma concepção integradora, unificadora e universal da força espiritual da literatura, que lhe serve de guia desde sempre. Foi neste sentido que introduziu a poesia de Fernando Pessoa, entre outros escritores, nos Exercícios Espirituais do Retiro de Quaresma do Papa e da Cúria Romana, em Fevereiro de 2023", lê-se ainda na acta.

"Na sua vida, ainda com muito caminho a percorrer, José Tolentino Mendonça tem-se mantido fiel ao lema contido no título do seu mais recente livro. Tem sido um humilde e generoso Peregrino da Esperança”, conclui o júri.

Nascido na ilha da Madeira, em 1965, José Tolentino Mendonça viveu a sua primeira infância em Angola, tendo deixado África aos nove anos, aquando da independência das colónias portuguesas. "A minha infância foi uma experiência que poderia descrever como uma experiência de espaços. Nasci na Madeira. Com um ano de idade, fiz uma viagem com a minha mãe, no navio Príncipe Perfeito. Fomos para Angola, onde o meu pai já estava. Fui com os meus irmãos, era o mais pequeno. Do Lobito, as recordações são da amplidão do espaço. As casas eram grandes. Os espaços onde brincávamos livremente eram enormes. O meu pai, os meus tios: uma família de pescadores", contava em 2012, numa entrevista ao PÚBLICO.

Entrou no seminário aos 11 anos, iniciou os estudos de Teologia em 1982 e foi ordenado padre em 1990 na diocese do Funchal. Vive no Vaticano desde 2018. É licenciado em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa (1989) e estudou Ciências Bíblicas em Roma; fez o doutoramento em Teologia Bíblica, em 2004. Foi capelão, professor, director da Faculdade de Teologia e vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa.

Em 2011, foi nomeado consultor do Conselho Pontifício da Cultura, organismo criado por João Paulo II e que viria a ser substituído pelo Dicastério para a Cultura e Educação, em 2022, por decisão do Papa Francisco, que também escolheu José Tolentino Mendonça para o presidir. O cardeal é uma espécie de ministro com a responsabilidade pelas pastas da cultura e da educação. É responsável pela coordenação da rede escolar e das universidades católicas de todo o mundo (cerca de 11 milhões de estudantes), e pelas relações entre a Igreja e a cultura, a literatura, as artes e o património

Antes desta nomeação, José Tolentino Mendonça era ainda arcebispo e vice-reitor da Católica quando orientou o retiro de Quaresma do Papa Francisco e dos seus colaboradores mais próximos, em 2018. Nesse mesmo ano foi escolhido para arquivista do Arquivo Secreto do Vaticano e bibliotecário da Biblioteca Vaticana, na Santa Sé e, no ano seguinte, seria nomeado cardeal.

A descoberta de Herberto

Nessa mesma entrevista ao PÚBLICO, contou que tinha 16 anos quando conheceu pela primeira vez a obra de Herberto Helder (1930-2015). "Foi uma grande descoberta. Foi como se pudesse ouvir a música do mundo. Sentir que todas as coisas estavam vivas. Um lado orgânico do real. E aqueles advérbios que nele dão mais do que qualquer adjectivo. A entrada no seminário, que aconteceu muito cedo (tinha 11 anos), foi a possibilidade de entrar dentro de uma biblioteca".

Aconteceu nessa altura a escrita do seu primeiro poema, A infância de Herberto Helder, que começa com o verso: "No princípio era a ilha." Mas já antes Tolentino Mendonça escrevia. Foi muito importante, confessou ao PÚBLICO, a figura da sua avó materna, Maria, uma contadora de histórias que sabia alguns romances orais de cor: "A minha avó foi a minha primeira biblioteca. Uma das coisas que me comovem muito: numa recolha recente que se fez do romanceiro oral da Madeira, uma das pessoas que estão lá é a minha avó. A minha avó que não sabia ler nem escrever.”

A poesia de Ruy Belo, Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner, o Pasolini traduzido pelo Manuel Simões, e ainda a obra da escritora norte-americana Flannery O’Connor estão entre as referências deste poeta que ainda publicou textos no DN/Jovem, antigo suplemento literário do Diário de Notícias, com o pseudónimo de Tiago Hulssen, "21 anos, estudante universitário, Lisboa".

A totalidade da obra poética de José Tolentino Mendonça está publicada na Assírio & Alvim e a sua obra ensaística vem sendo editada pela Quetzal desde 2017. A editora divulgou esta tarde em comunicado que o cardeal optou por entregar a totalidade do Prémio Pessoa, no valor de 60 mil euros, a uma instituição de solidariedade.

O autor de Rezar de Olhos Abertos (ed. Quetzal)​ vai também ser distinguido esta sexta-feira com o Doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Aveiro, juntamente com a exploradora e autora de documentários sobre a biodiversidade Céline Cousteau, durante a cerimónia de comemoração dos 50 anos da instituição, a partir das 14h15, no Auditório Renato Araújo.

Para o escritor Francisco José Viegas, também seu editor na Quetzal, Tolentino é um poeta, tradutor e teólogo "com um raro poder de comunicação e que compreendeu bem a linguagem do nosso tempo e as suas inquietações".

"Depois de a cúria romana, ou seja, o Papa, o ter escolhido para coordenar os 'exercícios espirituais' da Cúria romana de 2017, havia um caminho aberto para uma espécie de catolicismo arrastado por uma tempestade espiritual, de que resulta o livro Elogio da Sede, que é bem o resumo do que pode ser uma espiritualidade católica para os tempos da crise actual, juntamente com Rezar de Olhos Abertos ou O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas", considera Francisco José Viegas.

Numa entrevista que deu ao PÚBLICO, em Julho de 2022, já depois da pandemia, José Tolentino Mendonça alertava que consideramos muito cómodo usar o telefone sem fios e em modo mãos livres, mas que nenhum desses dois expedientes funciona para a vida. “Precisamos como sociedade de aprender a valorizar os fios que nos ligam e entrelaçam, os fios sem os quais nós não somos. E descobrir que só temos verdadeiramente mãos, mãos livres, quando as damos”, defendia.

Em 2016, no Festival Correntes d'Escritas, disse acalentar o sonho de “ver o silêncio declarado património imaterial da humanidade”.

Falar de Deus para não-crentes

Para muitos, principalmente para quem é de Lisboa, o cardeal Tolentino será sempre o padre Tolentino. O jesuíta Francisco Mota, director-geral do centro cultural Brotéria, lembra que muitos o conheceram nessa função, quando vivia em Santa Isabel e desenvolvia trabalhos muito variados por toda a cidade. "Foi sempre um homem super-carismático que se distinguiu por ter uma abordagem à vida espiritual muito cheia de força, de vitalidade, e por ter também um olhar sobre a realidade muito bom e muito puro", afirma o director do centro cultural do Bairro Alto ao PÚBLICO.

“É um homem bom, simples, que sempre quis falar de Deus e ser um bom padre”, acrescenta Francisco Mota. "Nestes últimos anos, de facto, ver o trabalho magnífico que fez na Universidade Católica, a maneira como o Papa ficou impressionado no retiro que foi dar a Roma (antes de se mudar para lá definitivamente), tudo isso são só consequências deste homem de fé, com uma personalidade extremamente atenta à beleza, à bondade, a tudo o que constitui a nossa humanidade mais básica e mais primária”.

Por outro lado, tal como defende Francisco José Viegas, "a ideia que está em todos os textos de Tolentino como homem católico é a de facilitar o 'diálogo Igreja-cultura', como tinha determinado João Paulo II". O escritor e editor considera que "talvez a Igreja tenha encontrado [nele] uma voz que consegue dar voz às inquietações presentes daquele documento intitulado Onde está o teu Deus? (de 2004), e onde se enumeravam os sinais da crise da fé e da religiosidade".

"A tarefa de José Tolentino Mendonça é das mais difíceis no momento actual da Igreja católica, porque não se restringe apenas à sua 'comunidade interna' – mas também à invenção de uma linguagem para comunicar com crentes e descrentes. Talvez só um poeta possa fazê-lo. Não é por acaso que o seu novo livro, Metamorfose Necessária, seja uma proposta de releitura de São Paulo, o grande criador e comunicador do cristianismo", sublinha ainda Francisco José Viegas em depoimento enviado ao PÚBLICO.

Na citada entrevista de 2012, Tolentino afirmava que não tinha um discurso para os crentes, que acreditava muito naquilo que Simone Weil dizia: “Estão dois homens, um diz que é crente, o outro diz que é não crente. Este está mais próximo de Deus do que o crente.”

Também o arquitecto Álvaro Siza manifestou esta tarde “grande satisfação” pela atribuição do Prémio Pessoa a José Tolentino Mendonça. “É um prémio justíssimo, a um homem extraordinário, de quem, além do mais, sou amigo; e ele é meu amigo”, disse ao PÚBLICO.

Nesta personalidade multifacetada – e ainda “com muito caminho a percorrer”, como diz o júri –, Siza realça a figura do “cardeal brilhante”, a quem foi atribuída, entre “vários outros cargos importantes, a responsabilidade pelo Arquivo e pela Biblioteca do Vaticano, o que é uma prova de grande confiança da parte do Papa”. Mas Siza destaca ainda o "grande poeta", citando, entre tantas outras obras, A Papoila e o Monge [Assírio & Alvim, 2013], “um livro belíssimo de poemas haiku, à maneira dos japoneses”.

“Regozijo-me com o prémio”, reforçou o arquitecto que este ano assinou uma intervenção no Pavilhão do Vaticano na 18.ª edição da Bienal de Arquitectura de Veneza, precisamente a convite de José Tolentino Mendonça, comissário daquela representação na qualidade de responsável pelo Dicastério para a Cultura e a Educação da Santa Sé.

“Ele convidou-me para intervir no pavilhão; fiz umas esculturas que foram montadas naquele cenário fantástico da Abadia de San Giorgio Maggiore. O tema que ele me propôs tratar foi Amizade social: encontro no jardim. E correu muito bem. Sei que ainda lá estão, até. Eu é que ainda não as vi lá, porque não viajo, apenas as vi cá.”

José Tolentino Mendonça "tem-se afirmado como figura central na cultura portuguesa contemporânea, dando continuidade, por um lado, à presença do cristianismo na sociedade, cultivando, por outro, o diálogo com o mundo laico e os valores humanistas, e resgatando, enfim, ideias de empatia e sabedoria em tudo opostas à polarização, ao imediatismo e à estridência", considerou por sua vez o Presidente da República na sua mensagem de felicitação ao padre, teólogo, poeta, cronista, ensaísta e académico agora premiado, divulgada no site da Presidência da República. Marcelo Rebelo de Sousa escolheu-o como presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas em 2020.

"Juntar o meu irmão cardeal José Tolentino Mendonça, tal como já antes juntou o irmão cardeal Manuel Clemente [Prémio Pessoa em 2009], é motivo de alegria e regozijo", considerou numa declaração enviada à Lusa o cardeal Américo Aguiar. "Parabéns ao galardoado e ao júri por mais uma vez nos sinalizar o que de melhor temos e somos."

O padre António Alves Martins, que substituiu Tolentino Mendonça como capelão da Capela do Rato, em Lisboa, a partir de 2018 — altura em que o cardeal foi para Roma —, considerou que a atribuição do Prémio Pessoa é motivo de "profunda alegria" para aquela comunidade. "É um prémio em que todos [comunidade da Capela do Rato] nos revemos, pelo percurso que o cardeal Tolentino fez" e é "mais um motivo de alegria e de qualificação desta comunidade que tanto lhe deve", disse à Lusa.

Agraciado com a Ordem do Infante D. Henrique e Ordem Militar de Sant'Iago de Espada, Tolentino Mendonça recebeu também a Medalha de Mérito da Região Autónoma da Madeira em 2019 e o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva no ano seguinte.

A sua obra tem sido distinguida, nomeadamente com o Prémio Cidade de Lisboa de Poesia (1998) e o Prémio Pen Club de Ensaio (2005). Em 2010 venceu o prémio Fundação Inês de Castro com O viajante sem sono, tendo dito, aquando da entrega da distinção, que "o poema é uma inevitabilidade da experiência humana", recorda a Lusa. Em 2015, recebeu o prémio italiano Res Magnae para ensaio, bem como o Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes com A noite abre os meus olhos. Em 2016 voltou a conquistar um galardão da Associação Portuguesa de Escritores, neste caso na categoria de crónica, com Que coisas são as nuvens, e o Prémio Capri-San Michele foi-lhe entregue no ano seguinte. Em 2022, venceu o Prémio D. Diniz pelo seu mais recente livro de poesia, Introdução à pintura rupestre (2021).

Poeta sucede a poeta

No ano passado, o Prémio Pessoa foi atribuído ao médico, cirurgião e poeta João Luís Barreto Guimarães, que o júri considerou "uma voz inconfundível na poesia portuguesa contemporânea desde 1989", quando publicou o seu primeiro livro, aos 22 anos.

Nos últimos anos foram distinguidos o jurista especializado em assuntos do mar Tiago Pitta e Cunha (2021); os cientistas e investigadores Elvira Fortunato (2020), Miguel Bastos Araújo (2018), Maria do Carmo Fonseca (2010), Henrique Leitão (2014) e Maria Manuel Mota (2013); o actor e encenador Tiago Rodrigues (2019); o arquitecto Manuel Aires Mateus (2017); o artista plástico Rui Chafes (2015); o professor, escritor e tradutor Frederico Lourenço (2016); o escritor e tradutor Richard Zenith (2012) e o ensaísta Eduardo Lourenço (2011).

Mas também já receberam este prémio, que existe desde 1987, os historiadores José Mattoso e Irene Flunser Pimentel; os poetas António Ramos Rosa, Vasco Graça Moura, Manuel Alegre e Herberto Helder (que recusou o galardão), o fotógrafo José Manuel Rodrigues; a artista plástica Menez; os escritores José Cardoso Pires e Mário Cláudio ; o actor Luis Miguel Cintra; o arqueólogo Cláudio Torres; a pianista Maria João Pires; os arquitectos Eduardo Souto de Moura e João Luís Carrilho da Graça; o compositor Emmanuel Nunes; o cinéfilo e historiador de cinema João Bénard da Costa; o académico e empreendedor António Câmara; o constitucionalista José Joaquim Gomes Canotilho; o filósofo Fernando Gil; os cientistas António e Hanna Damásio; os médicos João Lobo Antunes e Manuel Sobrinho Simões ou o actual cardeal-patriarca de Lisboa D. Manuel Clemente.

O Prémio Pessoa é uma iniciativa do semanário Expresso, com o patrocínio da Caixa Geral de Depósitos.


Com Bárbara Wong e Sérgio C. Andrade

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