Cooperativas de habitação – uma solução em que vale a pena investir

Existe um entusiasmo renovado com a criação de novas cooperativas de habitação e temos hoje a massa crítica capaz de fazer crescer o sector de uma forma autónoma e estável.

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Vivemos uma crise de habitação cada vez mais grave e socialmente abrangente.

É um problema que sentimos na pele, na das pessoas que nos rodeiam e nos lugares em que vivemos. Perante um quadro que exige medidas de intervenção urgente e outras de reestruturação a médio e longo prazo das políticas de habitação, as cooperativas são uma solução que devemos fazer crescer. A médio prazo não podem ser uma solução de nicho ou de caráter experimental, mas sim um dos principais instrumentos para alargar o parque habitacional não lucrativo e responder aos graves problemas que enfrentamos.

As dificuldades no acesso à habitação são uma consequência –​ desvalorizada há anos – de um modelo de desenvolvimento baseado na concentração dos ganhos económicos sem a devida redistribuição. Se a direita liberalizou drasticamente os quadros legais do arrendamento e, simultaneamente, criou disposições de venda de cidadania em troca de investimento imobiliário como os vistos gold, os últimos governos não têm sido capazes de executar os programas habitacionais por si criados. Por exemplo, apesar do diploma original do 1.º Direito ser de 2018, a sua execução só arrancou com o Plano de Reestruturação e Resiliência, um financiamento extraordinário que termina em 2026. E depois disso? Como poderemos manter o investimento tão necessário na habitação?

Também só este ano foi lançada uma proposta de maior alcance na alteração dos programas de habitação, o pacote Mais Habitação. O adiamento de uma intervenção proporcional ao agravamento do problema agigantou-o, e agora encurtar a distância entre os rendimentos da maioria e o valor da habitação terá custos muito mais elevados para o erário público.

Por vezes, o problema de acesso à habitação confunde-se com o da inoperância da decisão política. Não vemos que as decisões tomadas funcionem no sentido de resolver os problemas que temos. Se na área da habitação se identifica facilmente alguma proliferação e disfuncionalidade dos instrumentos de intervenção, a par de uma herança de décadas de desvalorização da função social da habitação e da sua liberalização, no quadro mais alargado de políticas públicas rapidamente nos apercebemos que as opções fiscais e económicas têm uma influência determinante no mercado da habitação.

Ou seja, o mercado habitacional funciona como se decidiu e legislou. Priva a maioria do direito à habitação e à cidade, em troca de uma promessa de crescimento económico e de alargamento da nossa economia que transforma a habitação num mero bem transacionável para a promoção do investimento financeiro, imobiliário e turístico.

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Em Portugal, o preço das casas duplicou desde 2015 Daniel Rocha

Contudo, viver numa habitação digna é a condição essencial para o acesso a outros bens e serviços de primeira necessidade: um conjunto de direitos protegidos constitucionalmente, promotores de uma vida saudável e longa, de condições para estudar, para descansar, para criar uma família, para trabalhar e ser feliz.

Do mesmo modo, o esvaziamento de residentes permanentes das nossas cidades é erosivo do nosso tecido social e cívico. As pessoas deixam de viver nas áreas urbanas mais consolidadas e com melhores infra-estruturas e serviços, e passam mais tempo em viagens pendulares longas e desgastantes. Ficam privadas da opção por modos de vida de proximidade, que não requerem o uso do transporte individual e oferecem maior qualidade de vida. Muitas vezes, vivem em espaços urbanos menos qualificados nos quais demoram a criar relações de vizinhança e comunidade. São modelos urbanos e cívicos opostos aos que devíamos promover para tornar as nossas áreas urbanas mais coesas, descarbonizar a economia, combater as alterações climáticas, criar relações fortes de comunidade e renovar a participação cívica e democrática.

O pacote Mais Habitação melhorou durante o processo de consulta pública, mas continua incapaz de preencher a distância entre o poder de compra da maioria e o custo da habitação. Todavia, foi positivo introduzir na lei 56/2023, de 6 de outubro, a Nova Geração de Cooperativismo para a Promoção de Habitação Acessível.

A criação de um novo modelo de cooperativismo habitacional é uma resposta que se exige a dinâmicas cooperativas renovadas, que partilham a vontade de emancipação e de qualidade da decisão democrática interna com as cooperativas do início da nossa democracia, que na altura deram resposta a uma crise habitacional igualmente grave. Um legado histórico feito de experiências que não devemos desvalorizar.

Promover o modelo de propriedade colectiva com uso de património imobiliário público e fomentar a reabilitação mediante financiamento público, parcialmente a fundo perdido, foi um passo legislativo positivo que permitirá criar projetos-piloto que carecem de regulamentação.

Neste âmbito, viabilizar o alargamento do sector cooperativo habitacional depende da capacitação quer das cooperativas existentes, quer dos cooperadores. Criar e gerir uma cooperativa de habitação pressupõe uma carga jurídica, administrativa e contabilística para a qual a maior parte dos intervenientes envolvidos não têm formação ou experiência, o que limita o crescimento das cooperativas e do sector e pode conduzir a uma gestão difícil das organizações.

Se a pertinência das cooperativas habitacionais enquanto instrumento de procura por habitação própria também se prende com a possibilidade de aplicar aforros de pequena ou média dimensão na fase inicial de investimento, garantindo posteriormente rendas acessíveis e estáveis durante um período alargado, só possível à população de rendimentos médios, não podemos esquecer a importância da diversidade sócio-económica dos tecidos urbanos na coesão da nossa sociedade.

Sobretudo em investimentos de grande impacto urbano e comunitário, em resposta a sérias carências habitacionais diagnosticadas para as Estratégias Locais de Habitação, e à luz de projectos semelhantes noutros países europeus, devemos rejeitar soluções habitacionais segregadas, e promover nos projectos-piloto da nova geração de cooperativismo a inclusão de pessoas sem capacidade de procurar casa no mercado privado ou pelos valores do arrendamento acessível.

Por fim, a criação dos projectos-piloto e a regulamentação necessária à execução do novo programa de cooperativismo habitacional deve ser feita de forma aberta e transparente, com divulgação pública das ferramentas criadas, assim como da mobilização do património público e das condições de investimento. Só assim o cooperativismo pode ser alargado e visto como uma solução possível e útil a mais pessoas.

A discussão sobre a habitação, como noutras áreas, permanece dicotómica entre um Estado que tem sido mais assistencialista do que regulador e um sector privado que, legitimamente, procura o lucro nos seus investimentos. Atualmente, o sector cooperativo, a terceira esfera de desenvolvimento social prevista na Constituição, está em declínio e é visto como uma solução de curto alcance, de poucos para poucos e mais comum no sector primário.

O investimento público no sector cooperativo difere do investimento em habitação pública, que deve continuar após 2026, procurando atingir as médias do parque público europeu.

As cooperativas de habitação, principalmente numa fase inicial do novo programa, precisam de ter os apoios públicos necessários à sua viabilidade (financeiros, técnicos, direitos de superfície de propriedade pública, entre outros) os quais, conjugados com o investimento individual dos cooperadores, permitirão expandir o contributo das cooperativas para a solução dos problemas de habitação em Portugal. Contudo, o sector cooperativo tem uma vocação de autonomia, quer do Estado, quer do mercado privado. Para manter essa vocação, deve garantir que os custos com a conservação do edificado a curto, a médio e a longo prazo não dependem de financiamento público, tal como a sua gestão corrente não depende de recursos técnicos públicos.

Deste ponto de vista, a médio e longo prazos, o alargamento da oferta habitacional não lucrativa através do crescimento do cooperativismo poderá aliviar o Estado dos custos de conservação e apoio técnico a um parque habitacional que cumpre a sua função social.

Existe um entusiasmo renovado com a criação de novas cooperativas de habitação e temos hoje a massa crítica capaz de fazer crescer o sector de uma forma autónoma e estável. Os tempos do período pós-25 de abril já lá vão, e a aprendizagem com os erros do passado não deverá alimentar divisões num sector com potencial sócio-económico para ter um impacto muito significativo na oferta de habitação.

O sector cooperativo precisa de ser promovido como uma forma de alargar um espaço económico mais justo e solidário num contexto de financeirização económica que descapitaliza o investimento de pequena e média dimensão. As cooperativas de habitação, como as integrais e de outros sectores, têm o enorme potencial de enraizar comunidades e de gerar valor localmente. É uma solução que precisa ser discutida de forma mais ampla, saindo de fóruns especializados de discussão para um debate público que homenageia a vontade democrática sempre subjacente à organização cooperativa, tanto no período imediatamente a seguir ao 25 de abril quanto agora, quando comemoramos os 50 anos de democracia. Comemorá-los com um novo ímpeto a formas de organização social e económica que oferecem às pessoas autonomia tanto em relação à autoridade do Estado quanto à exploração de lucro dos privados seria uma verdadeira celebração da democracia.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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