Henry Kissinger (1923-2023), o mais poderoso e controverso diplomata do pós-guerra
Ex-secretário de Estado norte-americano, elogiado pelo descongelamento do diálogo diplomático com Pequim e Moscovo, e condenado pelo apoio a ditaduras e golpes militares, morreu aos 100 anos.
Henry Kissinger, obreiro do estabelecimento de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a China e do descongelamento do diálogo com a União Soviética, mas também responsável pelo apoio tácito de Washington a vários golpes de Estado, sobretudo na América Latina, morreu esta quarta-feira, aos 100 anos, na sua casa no estado norte-americano do Connecticut, anunciou a sua empresa de consultoria geopolítica Kissinger Associates. Decano da diplomacia norte-americana, controverso Prémio Nobel da Paz pelo seu papel no Vietname e descrito como um criminoso de guerra pelos seus críticos, manteve-se como um dos mais influentes conselheiros de elites políticas e económicas internacionais.
Judeu alemão nascido a 27 de Maio de 1923 nos arredores de Nuremberga, Kissinger chegou aos Estados Unidos em 1938, aos 15 anos, em fuga ao nazismo. Mal sabia falar inglês e manteve um sotaque cerrado o resto da vida. No entanto, Kissinger, aluno brilhante em Harvard e ex-combatente na II Guerra Mundial, acabou por moldar a política externa dos Estados Unidos durante as presidências de Richard Nixon e de Gerald Ford, em plena Guerra Fria, e por construir um manto de influência sobre Washington e outras capitais nas décadas seguintes, como conselheiro de chefes de Estado e como pensador da política internacional, sobretudo enquanto proponente da realpolitik como força motriz das relações internacionais.
Foi como conselheiro de segurança nacional de Nixon, de quem se tornaria secretário de Estado, que Kissinger negociou em segredo com a China comunista, preparando o terreno para a histórica visita do Presidente norte-americano a Pequim, em 1972, e para o estabelecimento de relações directas entre Washington e o regime maoísta. O trunfo diplomático visou ao mesmo tempo isolar politicamente a União Soviética, o grande antagonista dos Estados Unidos na Guerra Fria, aproveitando o fosso aberto pelo conflito sino-soviético de 1963. Fez o mesmo no Médio Oriente em 1973, mediando pessoalmente contactos entre Israel e os países árabes após a Guerra do Yom Kippur e esvaziando o capital político soviético na região. Mas Kissinger também desenhou e executou uma política de détente com Moscovo, cultivando canais de diálogo directo e mecanismos diplomáticos que permitiram gerir a tensão entre as duas superpotências e firmar tratados de controlo de armamento nuclear que reduziram o risco de um confronto directo.
O derrube de Allende e a 'teoria da vacina' para Portugal
A realpolitik de Kissinger fez com que os Estados Unidos estabelecessem alianças controversas e fechassem os olhos a abusos quando estavam em jogo os interesses estratégicos americanos. A defesa dos direitos humanos e a promoção da democracia tornaram-se objectivos dispensáveis. “Somos um país, não uma fundação”, dizia. Acordou com Nixon o bombardeamento secreto do Camboja para destruir a retaguarda das forças comunistas do Vietname do Norte, sacrificando milhares de civis e colocando o país numa rota de conflito interno que culminaria na ascensão do regime genocida de Pol Pot. Deu luz verde ao derrube de Salvador Allende, líder democraticamente eleito do Chile. Fez vista grossa à invasão indonésia de Timor-Leste. Defendeu a violência brutal das forças militares paquistanesas contra os nacionalistas do Bangladesh. Acções e omissões que tinham em vista a contenção da influência soviética e que, pelo seu custo humano, fizeram de Kissinger um nome maldito e alimentaram o anti-americanismo em inúmeras geografias.
Se, com o Chile, Kissinger recusou "ficar a ver um país tornar-se comunista pela irresponsabilidade do seu povo", outra abordagem teve em relação a Portugal no pós-25 de Abril. O então secretário de Estado norte-americano advogava a "teoria da vacina" - se os comunistas chegassem ao poder em Lisboa, tal funcionaria de forma benéfica como um aviso para outros países europeus com partidos comunistas fortes, nomeadamente França e Itália. Não considerava importante, do ponto de vista estratégico norte-americano, perder Portugal para o bloco soviético. A Mário Soares, em visita a Washington em 1974, Kissinger disse que estaria condenado a ser "o Kerensky português", em referência à revolução menchevique de Fevereiro de 1917, derrotada meses depois pelos bolcheviques de Lenine. Errou o prognóstico.
Um Nobel da Paz e acusações de crimes de guerra
Kissinger é um dos mais controversos vencedores do Nobel da Paz. Não só por esse seu legado, mas também porque a atribuição do prémio em 1973, pelo seu papel nos Acordos de Paris, que visavam pôr termo à Guerra do Vietname, se revelou prematura. A paz não tinha sido efectivamente alcançada — como avisara Le Duc Tho, com quem Kissinger partilhara a distinção, e que recusou receber o prémio. Seguiu-se mais ano e meio de guerra e a derrota humilhante do aliado do Sul. Mas Kissinger, sempre pragmático, tinha conseguido retirar os Estados Unidos de um conflito onde tinha deixado de ser provável alcançar um desfecho que servisse os interesses americanos.
Kissinger beneficiou do escândalo do Watergate, que atou Nixon, com quem tinha uma relação ambígua, a uma conturbada frente doméstica, deixando-lhe terreno aberto na frente externa para se tornar no mais poderoso e autónomo secretário de Estado norte-americano do pós-guerra. Esse poder atenuou-se com a demissão de Nixon e a sua transição para a Administração Ford, onde manteve a batuta da diplomacia mas acabou por perder o cargo de conselheiro de segurança nacional. Com a vitória de Jimmy Carter em 1976, Kissinger abandonou a linha da frente da política externa norte-americana. Ronald Reagan considerou-o demasiado brando com Moscovo para equacionar chamá-lo de volta ao Departamento de Estado em 1980. Era tempo de cruzada ideológica, não de pragmatismo. Dois anos depois, capitalizando a sua extensa rede de contactos global, fundou a Kissinger Associates para prestar serviços de consultoria política junto do sector privado.
Entre o lobbying, a academia, os livros (Diplomacy, On China e World Order foram best-sellers), as conferências e alguns cargos em conselhos de administração, Kissinger fez fortuna nas suas últimas décadas de vida. Foi confrontado várias vezes em público por quem defendia que deveria ter sido julgado por crimes de guerra. Nessas ocasiões, como numa conferência em Harvard, em 2012, ou numa audição no Capitólio em 2015, Kissinger rejeitava responsabilidades directas e pedia que se olhasse para a “big picture”, o panorama geral, de forma pragmática. Por precaução, evitou visitar países onde poderia ter sido detido.
Tributos e críticas
Mesmo longe do poder, Kissinger nunca perdeu o estatuto de eminência parda em Washington, aconselhando George W. Bush nos anos da Guerra do Iraque, visitando Barack Obama e Donald Trump na Casa Branca, e aparecendo em Julho em Pequim, onde foi recebido pelo Presidente chinês, Xi Jinping. Com Joe Biden, que recentemente afirmou saber mais de política externa do que Kissinger, a relação era menos calorosa. Xi foi mais rápido que o Presidente norte-americano a lamentar publicamente a morte do diplomata: "Kissinger será sempre recordado pelo povo chinês, que sentirá a sua falta".
Os tributos, com ou sem adversativas, foram chegando ao longo do dia na quinta-feira. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, enviou uma mensagem de condolências a Joe Biden em que sublinhou "as suas qualidades enquanto diplomata, académico, personalidade multifacetada, que marcou, como poucos, as relações internacionais nos últimos cinquenta anos". Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, afirmou que "a estratégia e a excelência de Henry Kissinger na diplomacia moldou a política global no século XX", e que "a sua influência e legado vão continuar a reverberar pelo século XXI".
"O nome de Henry Kissinger está inextricavelmente ligado a uma linha pragmática da política internacional, que a dado momento tornou possível alcançar uma détente nas tensões internacionais e alcançar os mais importantes acordos entre soviéticos e americanos, que contribuíram para o fortalecimento da segurança global", escreveu o Presidente russo, Vladimir Putin, numa mensagem enviada à família Kissinger em que descreve ainda o diplomata como um "homem extraordinário".
"Um gigante da história", chamou-lhe o Presidente francês, Emmanuel Macron. "Um grande diplomata", declarou o chanceler alemão, Olaf Scholz.
Críticas também. O embaixador do Chile nos Estados Unidos, Juan Gabriel Valdés, escreveu na rede social X que Kissinger foi "um homem cujo génio histórico nunca conseguiu disfarçar a sua profunda pobreza moral". Em Nova Iorque, na noite de quarta-feira, a notícia da morte do diplomata foi recebida com júbilo por manifestantes pró-palestinianos em Manhattan. Nas horas seguintes, o título escolhido pela revista Rolling Stone era partilhado efusivamente nas redes sociais: Henry Kissinger, criminoso de guerra amado pela elite americana, morre finalmente.
Mulheres e futebol
Kissinger dizia que “o poder é o derradeiro afrodisíaco”. Sem dever à fotogenia ou à estatura, coleccionou vários relacionamentos íntimos que alimentaram as colunas do social. Casou pela primeira vez, em 1949, com Ann Fleischer, que também tinha fugido de Nuremberga, e com quem teve dois filhos. Divorciou-se em 1964 e voltou a casar dez anos depois com Nancy Kissinger, sua companheira até ao final da vida.
A sua outra paixão era o futebol. Durante anos, pediu à embaixada em Berlim que lhe enviasse os resultados da equipa onde jogou na adolescência, o Fürth. E, segundo Pelé, foi Kissinger a convencer o astro brasileiro a jogar na liga americana nos anos 70.
O ex-secretário de Estado norte-americano celebrou o centésimo aniversário em Maio e manteve-se activo até aos seus últimos dias. Encontrara-se em Setembro com o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky (chegou a sugerir que Kiev deveria aceitar a anexação russa de alguns territórios, mas o seu pensamento evoluíra nos últimos tempos e defendia um forte apoio americano e a adesão da Ucrânia à NATO), e continuava a comentar assuntos internacionais. Kissinger morreu esta quarta-feira em casa, rodeado dos dois filhos e da actual mulher. A causa do óbito não é conhecida.