De uma janela na Arrentela, Soraia Ramos fez-se cantora para “espalhar a cultura” de Cabo Verde
Com milhões de audições e uma data no Coliseu dos Recreios à porta, tanto pode ser encontrada no bairro onde cresceu como na Web Summit. É uma “inspiração”, uma voz em crescimento na lusofonia.
Hora do recreio na Escola Básica da Quinta de S. João, na Arrentela, margem sul de Lisboa. Tinha tudo para ser mais um dia normal, mais uma brincadeira de crianças, só que não. Há uma visita especial. Inesperada, mas totalmente desejada.
– É a Soraia Ramos!!!
– Não acredito que ela está aqui.
– Ela é a minha cantora preferida!
– Soraia Ramos, vais entrar? Vais falar connosco? Vais?
Ela entra, e mal entra é um coro desafinado de gritos, um corrupio de pulos, high fives aqui, abraços acolá, um atropelo de perguntas/pedidos/carinhos. Uma miúda chora, toca-lhe no cabelo, dá-lhe um abraço prolongado. Diz-lhe: “Eu sou cabo-verdiana como tu.” Outros chegam-se à frente: “Nós também somos e sabemos falar crioulo!” Soraia retribui com perguntas, com respostas, com mimos. Conta-lhes que andou naquela escola, que cresceu na Arrentela. Acabam todos a cantar O nosso amor, música feita a meias com os Calema. Várias crianças têm a letra na ponta da língua.
“Não estava à espera que me conhecessem, porque são muito pequeninos. Eu, com a idade deles, não conhecia artistas, só a Floribella. Quer dizer que esta geração é mais atenta e informada, já tem acesso ao YouTube e a outras plataformas. Havia ali meninas que até sabiam as minhas raízes.” A explicação é, na verdade, bem simples, e não é só uma brincadeira de crianças: Soraia Ramos, cantora e compositora portuguesa de ascendência cabo-verdiana, é hoje um dos maiores nomes da lusofonia.
Com um alcance intergeracional e intercontinental, a artista de 31 anos dá concertos de Cabo Verde a Moçambique, de Angola à Guiné-Bissau, do Brasil aos Estados Unidos, de França à Suíça, dos Países Baixos ao Luxemburgo. Em Outubro, no Festival Iminente, o Terreiro do Paço, em Lisboa, foi demasiado pequeno para ela e para os fãs. O acerto de contas será feito a 30 de Março do próximo ano, na sua estreia no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, onde apresentará o novo e primeiro álbum, Cocktail, distribuído pela Universal, que contabiliza mais de 30 milhões de streams desde o lançamento.
Um resumo em 15 músicas – felizmente incompleto, felizmente inacabado, com mais para vir e porvir – de uma voz portentosa e versátil a driblar, sem vacilar e com janela aberta para o mundo, entre o r&b, a pop, o rap, o trap, a kizomba, o funaná, o afrobeats, o drill e até o sertanejo. Em crioulo cabo-verdiano e em português, com o mel e o fel dos amores e desamores drenados através do empoderamento feminino e da sororidade; a sodade das memórias de infância e o espírito pugilista de quem chutou muita pedra pelo caminho para chegar aonde chegou sem ficar a dever favores a ninguém; o orgulho de quem canta Cabo Verde e a sua extensa diáspora (mais de um milhão), celebrados do início ao fim na letra e no videoclip de Nha terra (benditos sejam a cachupa, o cuscuz, o grogue, o ferrinho do funaná, os mercados da ilha de Santiago, Cesária Évora, Amílcar Cabral, e por aí fora).
Foi Cocktail que nos trouxe até aqui, à Arrentela, o bairro onde Soraia Ramos foi criada pelos avós desde os seis meses (“Eles tinham seis filhos, eu era a sétima”) e onde viveu até emigrar para França com a família, aos dez anos, “à procura de melhores condições de vida”. Mal chegamos, coincidência ou não, vemos uma bandeira de Cabo Verde pendurada na varanda de um dos prédios.
“Este é o meu berço. Venho cá pelo menos uma vez por mês para ver os meus avós e acabo por me cruzar com várias pessoas. Não quero que elas me vejam como uma estrela, como alguém intocável”, conta ao Ípsilon. “‘Ah, mas tu agora és cantora’, dizem-me. “Sou, mas continuo a mesma. Sou uma pessoa como vocês, que se vai sentar aqui com vocês. Apenas segui o meu sonho e deu certo. É importante mostrar aos jovens que podem correr atrás do que desejam, apesar de todas as barreiras que a sociedade impõe. Não é porque és do bairro que és menos.”
Os Calema, dupla dos irmãos António e Fradique Mendes Ferreira, outro caso de sucesso em Portugal e nos PALOP, que acompanham o percurso de Soraia Ramos desde que começou “a fazer os primeiros covers” – como Bo tem mel, de Nélson Freitas –, afirmam que a cantora e compositora “é hoje um modelo e uma inspiração para os jovens”, sobretudo para as mulheres africanas e afrodescendentes.
“Na lusofonia, a nível musical, as mulheres ainda têm pouca representatividade e ainda há muitas portas que se fecham no mercado. Infelizmente, ainda vivemos numa sociedade que não tem conhecimento suficiente para respeitar e dar espaço a toda a gente”, observam os músicos de origem são-tomense, que a 13 de Abril do próximo ano vão celebrar 15 anos de carreira na Altice Arena, em Lisboa. “A Soraia, através da sua música e da sua garra, vai mostrar a outras mulheres que é possível. Ela vai fazer a diferença. Já está a fazer a diferença.”
“Mudjer guerreria, muito trabadjadera”
“Se a tua professora Iolanda fosse viva, ia ficar muito orgulhosa de ti, podes crer”, comenta Elisabete, 64 anos, contínua da Escola Básica da Quinta de S. João que conhece Soraia Ramos desde pequena. “Fala-se muito da Soraia aqui no bairro, e também do irmão, outro cantor [Lisandro Cuxi, a viver em França, com quem Soraia fez a música Bai – Remix]. Eu sabia que ela cantava, mas não estava à espera que desse este salto na carreira. Fico muito feliz. Ela sempre foi uma boa menina, era muito comunicativa”, diz Elisabete. “Eu adorava que ela desse um concerto aqui no bairro.”
Cátia, colega de Elisabete, atira: “Eu também. O meu marido adora-a. Vai ficar cheio de inveja quando eu lhe disser que estive aqui com ela.” As contínuas não estão aos pulos como as crianças, mas não escondem o entusiasmo. Pedem fotos, tiram selfies, desdobram-se em abraços. Ao sair da escola, uma contínua entrega a Soraia um desenho feito por uma aluna, com cores a combinar com a roupa da cantora e a referir as canções preferidas. “Da tua fã número 1.”
Soraia ia a pé para a escola todos os dias com “amigas lá do prédio”. Antes, parava sempre na loja do senhor Reis para apanhar “o lanchinho”. Um bolo e um sumo, nunca falhavam, mesmo que a carteira falhasse. “A minha avó fazia aqui as compras, porque era o único sítio em que podia pagar no final do mês. Às vezes não tinha dinheiro suficiente para pagar logo. Então esta loja sempre foi a nossa segunda casa. Era família.” Não é por acaso que é mencionada em Mama, a canção que encerra Cocktail. Uma carta de amor à avó, mudjer guerreria, muito trabadjadera, a puxar pelos rendilhados da morna tingidos a afro-pop.
“Isto não é só um mercado. Nós tentamos que as crianças e todas as pessoas que venham cá façam parte das nossas vidas, e nós das delas. Isso cria laços de afectividade”, considera Helena, funcionária da casa há 36 anos. “Eu vi a Soraia crescer e é uma daquelas miúdas de quem vamos gostar para a vida, mesmo que agora nos vejamos poucas vezes.” Ouvi-la, pelo menos, está garantido. “Tu não sabias, mas a Rádio Seixal passa todos os dias a tua música”, diz Helena a Soraia. “Para alguns miúdos ela é uma referência, eu bem os vejo aqui a cantarolar as músicas dela. O que é muito bom: se ela conseguiu, outros também podem conseguir. E há muitos miúdos aqui do bairro que fazem música. Alguns conseguem furar, mas muitos não são divulgados.”
Helena e Soraia abraçam-se pela oitava, nona, décima vez. “Estamos a desfazer a maquilhagem toda”, solta a cantora, já de lenço na mão. “Chorei ontem para não chorar hoje.” Mas a choradeira continuará, numas ruas ao lado, em frente ao prédio onde Soraia cresceu.
França-Suíça-Portugal
“Ela aqui no primeiro andar, eu no segundo. Seis da tarde, depois da escola, e esta menina: ‘Soninha, vou cantar uma música bonita para ti.’ Ela era muito chatinha, mas tinha uma voz que entrava aqui, percebe?” Sónia, 60 anos, aponta para o coração. Era para ela que Soraia cantava à janela. Músicas de Anselmo Ralph, Sara Tavares, Floribella. “Quando emigrou, eu senti muito a falta dela. Deixei de sentir aquele amor de final de tarde”, recorda a ex-vizinha. “Antes de ela ir embora, eu disse-lhe que ela ia ser uma grande cantora. ‘Achas, Soninha? Então vou cantar mais uma.’”
Nessa altura, Soraia Ramos não pensava em fazer música. “Cantava só pelo prazer de cantar. As pessoas do bairro acreditavam mais que eu ia ser cantora do que eu própria.” Quando fosse grande, queria ser actriz, tudo por causa das novelas brasileiras que via com a avó. Foi em França que se deu a viragem, inspirada por artistas da África francófona. Começou a fazer versões aos 14, 15 anos. “A minha avó dizia sempre: ‘Estudar é mais importante do que cantar. Cantar, cantas lá no teu quarto’. Eu sei que ela queria o melhor para mim, mas eu ficava com um ódio!”, lembra Soraia, que conta parte dessa história numa das suas primeiras canções de cunho próprio, Um pouco de mim (2014).
Uns anos depois, terminado o curso de recepcionista, e já a morar na Suíça, teve “mais liberdade” para se focar na música. Contudo, não foi fácil. Muita pedra pelo caminho. Tentou assinar pela Klasszik, editora, agência e estúdio de produção da qual hoje faz parte, mas levou várias “negas” de Nelson de Sousa, o cabecilha da Klasszik e um dos produtores mais bem cotados de Portugal e dos PALOP, à época também a viver na Suíça. “Ele dizia que não tinha tempo, que eu ainda precisava de crescer, que não tinha a imagem certa. Eu respondia que o mais importante era a minha voz”, conta a cantora e compositora. “Continuei a fazer as minhas músicas, os meus videoclips, os meus showzinhos.” Também tentou conectar-se com artistas e produtores em Portugal e na Suíça, mas não lhe prestaram atenção.
Decidiu, citemo-la numa das suas canções, “lutar como uma soldjah sozinha”. Percebeu rapidamente que a indústria da música tem garras afiadas, sobretudo para mulheres. “É um salve-se quem puder. Faz por ti, senão ninguém faz”, afirma. Mais tarde acabou por ser recrutada por Nelson de Sousa, o que a fez mudar-se para Portugal. “No início fiquei muito chateada por não me terem assinado, mas hoje agradeço, porque ganhei outra maturidade, de forma independente.”
Quem acompanhou de perto esta jornada foi Cátia Teixeira, amiga de longa data. Encontramo-la junto à antiga casa de Soraia. “Temos uma diferença de dez anos, mas crescemos juntas, brincávamos juntas. Ela era deste prédio, eu sou ali do terceiro”, aponta. “Ficámos mais próximas quando a Soraia emigrou. Sempre que ela vinha, estava comigo. Eu pedia-lhe para cantar Whitney Houston e ela passava-se comigo.” Soraia: “Não pedias músicas fáceis, né? E era a toda a hora.” Cátia: “Eu ficava toda arrepiada com a voz dela. Dizia-lhe: ‘Tu vais ser cantora.’ Eu sempre acreditei.”
Tanto acreditava que ela própria tentava abrir portas. “Como era mais velha e conhecia pessoas no mundo da música, procurava estabelecer contactos, mas ninguém acreditou nela. Sei que hoje há produtores que já se arrependeram.” Durante vários anos, desde o primeiro concerto que Soraia Ramos deu numa discoteca na Amora em 2015, Cátia foi a sua agente-cabeleireira-companheira de vómito-irmã-cúmplice. Dupla imbatível, diríamos.
“Ela trabalhava na Suíça, na Subway [cadeia de restaurantes de fast food], de segunda a sexta. Levava a malinha dela para lá às sextas de manhã, no final do trabalho ia logo apanhar o avião para vir para cá cantar. Chegava supercansada, às vezes doente. Houve um dia em que ela só vomitava, e eu decidi dar-lhe água com farinha para parar o vómito mesmo antes do concerto. E resultou. Ela cantou como se nada fosse. Nunca desistia”, conta Cátia. “Eu também a penteava. Fartou-se de ter o pescoço e a testa queimados por causa das pranchas”, diz entre risos. “Era uma correria, porque eu sempre tive mais do que um trabalho, então era tentar ir aqui e ali, meter uma folga, sempre para a acompanhar.”
Batalha longa, mas batalha ganha. “Agora ela vai estar no Coliseu, que foi sempre onde eu a quis ver”, diz Cátia, que faz questão de marcar presença nos concertos que Soraia tem dado em Portugal, do festival Sol da Caparica ao Sudoeste. “Ela lutou tanto para chegar até aqui; as pessoas não têm noção. Eu tenho mesmo muito orgulho nela, também por ela continuar a ser uma pessoa simples, igual no palco e na vida real.”
Sónia intervém, em tom pausado, assertivo e afectuoso, de quem tem muita escola da vida. “Eu dizia sempre à Soraia: meu amor, humildade. Porque se formos humildes, o mundo carrega-nos.” Olhos marejados não tardam a chegar. “Soninha, não chora, pelo amor de Deus!”
“Seguir as pegadas da Cesária Évora”
Próxima paragem: Web Summit. Almoço rápido, troca de roupa, look de fazer parar o trânsito, e energia é coisa que ainda não lhe falta. Soraia Ramos participa numa breve conversa no palco Audio Waves, na qual apresenta o disco e o concerto no Coliseu. Acaba a cantar a cappella um trecho de O nosso amor, provavelmente inspirada pelo episódio daquela manhã na escola. Mal sai do palco, é convidada para participar na Web Summit de 2024 no Rio de Janeiro.
Durante o evento, é interpelada por vários fãs. Com um sorriso transbordante, nunca diz que não a uma foto nem a uma troca de palavras. Nem parece fazer fretes. Às tantas, senta-se numa esplanada do recinto a comer uma waffle de chocolate, acompanhada pela sua assistente pessoal, Vanessa Nicolau, e por duas fãs, Carla Marina Santos e Helga Saraiva-Stewart.
“Acompanho o percurso da Soraia não só porque gosto da música – para mim é impossível ficar indiferente àquela sonoridade da terra, àquele crioulo –, mas também porque me interessam artistas como ela, como o Dino D’Santiago, que ocupam um lugar de referência e de visibilidade no espaço público”, explica Carla Marina Santos, antropóloga e directora da Capacitare, empresa direccionada para a questão das migrações.
“Agora é sexy falar sobre representatividade e diversidade, mas é preciso que isto seja mais do que uma moda”, faz notar a empreendedora de ascendência moçambicana. “Os grupos sub-representados da sociedade não acreditaram em muita coisa, porque as oportunidades lhes são vedadas. Por isso precisamos de trabalhar na nossa auto-estima, criar um sentido de pertença, de comunidade, e para tal é muito importante ter exemplos como a Soraia Ramos, disseminá-los, e trazer outros connosco.”
Agora que está numa trajectória ascendente, Soraia Ramos sente o peso da responsabilidade. “Eu estou a tentar abrir caminhos, ultrapassar fronteiras, chegar a vários países, para que os próximos tenham um lugar melhor do que o meu. Eu quando cheguei aqui não tive assim tanta facilidade, mas já houve um trabalho feito pelos mais velhos: a Cesária Évora é uma pessoa que eu tomo sempre como exemplo, porque foi ela quem levou Cabo Verde o mais longe possível.”
“Hoje, o meu trabalho é tentar seguir as pegadas da Cesária Évora, ao mesmo tempo que levanto a bandeira da lusofonia. Já ficaria feliz se conseguisse fazer pelo menos metade do que ela fez em espalhar a cultura cabo-verdiana pelo mundo.” Também por isso, Soraia faz questão de cantar em crioulo cabo-verdiano, para “nunca deixar para trás” a língua e as suas raízes. Também por isso convocou para o seu disco colaborações com outros músicos portugueses de origens cabo-verdianas: Apollo G, no afro-drill de Muda, cujo videoclip foi rodado com a participação da população local na Buraca, bairro da Amadora onde cresceu o rapper (atingiu recentemente quatro milhões de visualizações no YouTube); e Nenny, na suadela de kizomba, funaná e afro-pop de Trompete, black power e black pride num hino feérico à ancestralidade, ao presente e ao futuro da mulher africana, materializado no respectivo videoclip, filmado em Cabo Verde.
Um cocktail de Soraias
Um dos cérebros principais por trás dos videoclips de Soraia Ramos é Nelson de Sousa, o comandante da Klasszik, o produtor de Cocktail. O homem que um dia lhe deu “negas”, mas que agora diz que Soraia é “a luz sempre acesa” da Klasszik. “Mesmo se ela estiver cansada, quando ela entra no estúdio traz sempre energia, está sempre com power. Já cheguei a ligar-lhe às duas da manhã, porque tive uma ideia, e ela veio para cá, de pijama e tudo.” Para o produtor, uma das características de Soraia “é ser uma artista aberta a experiências”.
“O álbum chama-se Cocktail, porque fomos experimentando vários estilos. A Soraia começou o percurso dela na kizomba e no r&b, mas agora encaixa em várias sonoridades”, assinala Nelson, com quem nos encontramos nos estúdios da Klasszik, em Sintra. Durante a elaboração do disco não puseram “barreiras”, foram “com a inspiração do momento, no momento”. Mas, obviamente, cientes daquilo que resultaria no mercado actual, numa altura em que a indústria da música a nível global está sedenta de sonoridades como o afro-pop, ou mesmo a música brasileira, uma das paixões assolapadas de Soraia que a cantora testa em Me deixou, sertanejo de trejeito afrotuga que já encantou superestrelas da música brasileira como Ludmilla, e que já pôs famílias brasileiras em Portugal a fazer coreografias nas redes sociais.
“Eu acabei por me descobrir neste álbum e o Nelson foi muito importante para me fazer ver certas coisas”, frisa a artista. “Consegui ver o quanto sou versátil, como consigo e gosto de me aventurar em vários estilos. São estilos que eu já ouvia, mas que nunca tinha explorado a sério na minha carreira.” Para a cantora e compositora, Cocktail é uma constelação de Soraias. “Há várias sonoridades, vários temas, várias mensagens, vários sentimentos.” Um deles é as dores de cabeça que os homens lhe dão.
“Eu às vezes quero escrever coisas boas sobre eles, mas eles não me deixam [risos]. Agora a sério: é importante que uma mulher fale das coisas como elas são, sem medos. O amor é lindo, mas também tem lados tóxicos, tem traições, tem violência”, observa. “Há muitas coisas que não podemos deixar passar em vão e que têm de ser faladas para que possa haver mudança.”
Canções como BKBN (a sua “terapia” após uma traição), Me deixou ou Desculpa são chapadas bem dadas (metaforicamente falando, atenção) em homens que pisam o risco. Sem esquecer Olha pra nós, desforra pós-break up partilhada com a cantora Carolina Deslandes, vai de rajada com aquelas verdades servidas em bandeja de prata: “Há quem queira, eu só tenho que escolher / Eu quero tudo menos ser tua mulher / Não é mudar, tinhas de voltar a nascer.” Em Não dá ah ah, música lançada em 2018, Soraia já havia deixado o recado, nada engasgado: “Isso é pra todas as mulheres / Nunca deixem ninguém tirar o vosso brilho / Pois nós somos lindas, cada uma da sua forma / E isso é assim, ou se não a porta da rua é serventia da casa.”
“Além de carregar sempre as suas raízes africanas, o que me chama na Soraia é a autenticidade das letras”, diz Jéssica, 23 anos, com quem nos cruzámos na Web Summit após tirar uma selfie com a cantora, cuja música começou a ouvir por causa da mãe. A amiga, Telma, concorda. “Nas canções sobre relacionamentos, é como se ela sentisse o que a gente sente diariamente. Ter alguém que consegue interpretar isto, com empoderamento e empatia, é muito bom.”
“Há muitas mulheres que me dizem que graças à minha música conseguiram sair de uma relação tóxica, separar-se do marido, não aceitar mais uma traição”, refere a artista. “É importante usar a minha voz também para dizer às mulheres que temos o poder de dizer não. Não somos submissas. Não é só o homem que decide.”
Perto dos fãs, pés assentes na terra
Neste e noutros assuntos, Soraia Ramos faz questão de prestar atenção aos seus fãs. Todos os dias, a várias horas, dirige-se a eles nas stories do Instagram. Confessa que passa muito tempo nas redes sociais, e que tem uma rotina “muito corrida”, mas é importante “dizer-lhes bom dia”, partilhar coisas do seu quotidiano, mostrar-lhes que “também limpa a casa”. Afinal, não estaria onde está hoje sem eles.
“Se eu vou fazer um Coliseu, que é um sítio que marca a carreira de qualquer artista em Portugal e que me vai ajudar a crescer cá, é graças aos meus fãs. São eles que partilham a minha música pelo mundo, são eles que juntam dinheiro durante meses para poder ir a um concerto meu.” Além de Cabo Verde, Moçambique é outro lugar especial. “Muita gente lá faz questão de aprender crioulo cabo-verdiano para cantar as minhas músicas. Levam-me presentes, tecidos africanos, quadros com a minha cara. Vivem com pouco, mas o pouco que têm eles dão.”
Depois do Coliseu dos Recreios, Soraia já tem outro desejo: actuar na Altice Arena. Mas sem pressas. Tudo a seu tempo, sempre com optimismo, sempre com energia para dar e vender. “Nunca fui pessoa de desistir, mesmo quando iniciei o meu percurso e havia dificuldades”, sublinha. “Acho que essa garra vem da minha avó. Ela encontrava forças não sei onde para batalhar contra o mundo, para dar comida aos seis filhos e a mim, que era a sétima. Se cais no chão, cais. Mas depois levantas-te, segues o teu caminho, não paras.”
E Soraia Ramos não pára. A hora é dela, e o toque final do recreio, esperemos, acreditemos, ainda está longe. “Música carrego desde o berço / Ninguém conhece o struggle do começo / Mas eu conheço, e viver disso não tem preço / Vou continuar aqui porque eu mereço”, canta ela, fogo e afago, na música de introdução de Cocktail. Palavra de Soraia, palavra aguerrida, palavra para desbravar caminho.