40 anos em 12 discos: para uma paisagem do rap português

Que um país minúsculo tenha visto florescer tão diversa paleta de músicos, eis algo que, se não for da ordem do milagre, será da do belo. Uma lista não ordenada de 12 álbuns imprescindíveis.

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O hip hop português passa por aqui Ana Carvalho
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Muitas formas haverá de mapear 40 anos de rap editado em Portugal. A discográfica é, provavelmente, a mais desafiante de todas elas. Uma escolha é, desde logo, isso mesmo: uma escolha, naturalmente subjectiva e limitada. Não nos interessou uma seriação dos “melhores álbuns do rap português”, antes o desenhar de uma paisagem que reflecte a pluralidade de universos de músicos pertencentes a diferentes gerações, latitudes (geográficas, individuais), sensibilidades artísticas. Donde frustradas redundarão as diligências dos que por aqui se afoitarem na busca de “quotas” ou de uma narrativa higiénica do rap português; a história é a história, compósita e complexa, não uma fantasia revisionista. Registe-se apenas que se procurou, isso sim, evitar repetições (a eleição de mais de um disco por artista) e privilegiar discos de grupos e músicos a solo (ou colaborativos), excluindo-se colectâneas e mixtapes.

Cinquenta anos de rap americano, 40 anos de rap português? Dito assim, o diminuto desfasamento de uma década nem parece verdade… Para quem a paisagem aqui proposta estimule a vontade de outros voos, algumas propostas para prosseguir caminho: Rapresálias (Chullage), Visão Periférica (Royalistic), Máscara (Ex-Peão), Maturidade (NBC), Alma & Perfil (Praso), Algazarra (Tribruto), A Árvore Kriminal (Allen Halloween), Em Nosso Nome (Sir Scratch), Coisas de 1 Porco (Beware Jack), Árvores, Pássaros e Almofadas (Minus), The Art of Slowing Down (Slow J), O Chão do Parque (Zé Menos), #FFFFFF (ProfJam), Assim Como Vai (Sitah Faya e spock), Causa Torpe (Azia)…

Boss AC – Manda Chuva (NorteSul, 1998)

A estreia de Boss AC selou-o, imediatamente, como um fora-de-série no microfone, uma autoridade na trilogia flow-storytelling-knowledge, tal qual o comprovam singles como Doa a quem doer, Andam aí, Reconhece, Velhos tempos, All night party, Coisas da vida e, claro, Anda cá ao papá. Não é só o look de AC na capa que convoca a Jiggy Era do então Puff Daddy e companhia: à boleia de Sem Cerimónias, dos Mind Da Gap, o disco foi misturado em Nova Iorque por Troy Hightower. Mas essa – a excelente qualidade da mistura – é uma das poucas coisas em comum entre os dois discos: onde os beats dos MDG soam maioritariamente escuros e outonais, aqui vai beber-se ao funk (mas também à música cabo-verdiana e caribenha) a sua toada divertida e saltitona, calor soul a piscar o olho a Barry White. Porto e Lisboa, circunspecção e festa (embora AC também fosse um excelente observador social, desde logo da marginalização dos afrodescendentes), uma velha e existencial questão climática (generalizando, claro…).

Da Weasel – Iniciação a uma vida banal – O manual (EMI, 1999)

Se o título é todo um programa, a música, essa, contrariava a banalidade anunciada. Na capa, o raio-X de duas mãos acorrentadas a bater texto numa máquina insinuava um homem preso a um vício, a uma terapia, a uma possível salvação… Chamava-se Pacman e, sabido o seu passado de dependências, essa imagem ganha ainda outra potência. É o álbum em que o almadense oferece alguns dos seus mais inspirados momentos na discografia de Da Weasel, a única “banda” de hip hop português digna desse nome. Se (No princípio era) o verbo, belíssima ode à palavra, podia estar em qualquer disco de rap underground da época, Agora e para sempre (com um videoclipe em que dois miúdos se beijam numa praia do princípio ao fim) confirmava a queda de Pacman para temas de amor com pés e cabeça. Mas também existe a paranóia de O remorso (o fantasma do VIH a penetrar a comunidade heterossexual), o dub viciante de O puro ou o lirismo de A adicção. Menos político e mais hedonista do que os trabalhos anteriores, confirmou o toque de Midas do grupo no tactear de diferentes sonoridades (rock, jazz, funk, electrónica) sem nunca perder coesão e vigor.

Dealema – Dealema (NorteSul, 2003)

“O” álbum definidor da “Escola do Porto” e inspiração para centenas de músicos e anónimos que um dia escreveram rimas num caderno ou se atiraram a improvisos numa qualquer rua da zona. Um álbum perfeito: nada aqui está a mais e de nada se sente falta. Introspecção, poesia, realismo social, canção de intervenção, espírito fadista, está lá tudo, um sonho molhado de conscious rap que talvez não tenha paralelo entre nós. Dezoito temas irrepreensíveis, implacáveis, que marcaram não uma, mas várias gerações, e que afirmaram definitivamente Mundo, produtor maioritário, como uma das referências do beatmaking português, cujo 2.º Piso não mais deixou de ser abrigo para criadores e aspirantes. No risco de destacar um tema, note-se como Intro “sampla” David Essex no Jeff Wayne's Musical Version of The War of the Worlds de 1978: “We gotta make a new life where they'll never find us. You know where? Underground!”.

Keso – KSX2016 (Paga-lhe O Quarto/Biruta, 2016)

Depois de O Revólver Entre as Flores, disco de 2012 que testemunhara a mudança do Porto para Lisboa para estudar cinema, KSX2016 fez a retrospectiva sobre um período emigrado (e amargurado) em Londres. Em ambos, a palavra rimada, dita e cantada deslizando sobre paisagens instrumentais que, entre o jazz, o funk ou a electrónica, primam pela sofisticação e o aventureirismo. Mas onde em O Revólver a experiência era sobretudo a da descoberta e convivialidade, aqui, o olhar, mais velho e desencantado, arranca do trauma (que, pese embora o humor e a mordacidade, nunca se desvanece por completo). Mais do que pessoal, o trauma da Geração Troika: “Eu lembro a cara desses dois lá no Sá Carneiro / E olhar para trás foi como um crime / Que eu nem queria ver / Projectado nos olhos de uma mãe / Que já só vê um filho à nora / À procura de um buraco onde esconder-se”… KSX2016 foi um pequeno fenómeno de popularidade, reabilitando os seus trabalhos anteriores e devolvendo o músico aos palcos com maior frequência, onde os discos crescem a olhos vistos. Quem tem a edição física pode orgulhar-se de se encontrar na posse de um pequeno tesouro (não disponível digitalmente): O medo.

Mind Da Gap – Sem Cerimónias (NorteSul, 1997)

O primeiro clássico de hip hop tuga chegou Sem Cerimónias / Foi quando o Porto começou a deixar Lisboa com insónias”. Em Hall Of fame, Valete chancelava o óbvio. Grande aposta da NorteSul (da Valentim de Carvalho), a “Tríade Nuclear” formada por Serial (produtor), Ace e Presto (rappers) elevou de tal forma a fasquia que, à época, tudo o que se fazia pareceu subitamente fraco. Talvez não fosse, Sem Cerimónias é que estava, de facto, muitos anos à frente. Para isso, foi decisivo Troy Hightower, que veio de Nova Iorque (onde trabalhara com os EPMD, Onyx, Beatnuts) para fazer a mistura dos (estupendos) beats de Serial e os versos ora graves e combativos, ora humorísticos e introspectivos, dos homens do microfone. O resultado, luxuoso, soa a um disco que podia ter sido editado na semana passada (o perfeito oposto de Rapública, 1994, que os Mind Da Gap recusaram integrar, e ouvir esses instrumentais e os de Serial é como estar em duas galáxias diferentes). A descendência dos MDG em todo o rap feito no Porto (e não só) começa nos Dealema (que participam, aliás, em dois temas) e nunca mais teve fim. Se temas como És como um don, Falsos amigos ou Nortesul (funkalhice a meias com os Da Weasel para espantar fantasias de uma rivalidade Porto-Lisboa à la East-West Coast) se tornaram um fenómeno geracional, “o” single de Sem Cerimónias foi Dedicatória, que a maioria dos ouvintes trauteava como se de uma canção para o seu amado se tratasse… Bom, e era, mas chamava-se hip hop.

Monstro Robot Monstro Robot (Monster Jinx, 2009)

Foi o primeiro álbum editado pela Monster Jinx, a sucessora, de alguma forma, da Matarroa na atitude desalinhada em relação aos cânones do hip hop. Stray, letrista e intérprete, já havia deixado em alguns trabalhos editados pela Matarroa o seu dedo: nerd, espirituoso, divertidamente surrealista, trouxe uma forma de abordar o texto característica (e prolixa) ao ignorar por completo as convenções da rima (mormente, a soante), provando como era possível “rappar” em estilo mais prosista do que versejador. Foi o único lançamento do trio composto por Stray, Slimcutz no scratch (ambos do Grande Porto) e DarkSunn (produtor almadense que encontramos aqui no seu topo de forma jazzístico), que depois enveredariam por numerosos projectos colaborativos ou a solo. Num imaginário com fortes ligações ao desenho animado e à banda desenhada, o seu sopro de frescura teve, previsivelmente, impacto diminuto num circuito de sobrolho franzido a crónicas de viagens de foguetão através de galáxias habitadas por ninjas e robôs. Há demasiado tempo que merece uma edição em formato físico.

Nerve – Eu Não Das Palavras Troco A Ordem (Matarroa, 2007)

Objecto moderno não identificado que sobrevoou o país no final da década, foi também o melhor lançamento da saudosa Matarroa, selo de Matosinhos que, na sua excentricidade e insolência (inclusivamente troçando dos clichés caros ao hip hop), foi o casamento perfeito para o abanão que o músico de Abrantes deu ao panorama nacional. Bebendo de influências a que a esmagadora maioria dos MC portugueses era até então alheia (não apenas musicais, mas também na literatura, cinema, banda desenhada), indiferente a binarismos (Porto e Lisboa, rap “consciente” ou “comercial”), Nerve abriu um novo território na então assaz monolítica cena portuguesa (com excepção dos MatoZoo, grupo na origem da Matarroa). O facto de ser o responsável pela artwork (cujas letras só se conseguem ler através de um truque óptico) logo indicia a dimensão visual da sua música, carregada de humor, ironia, storytelling e uma infinda imaginação. Mas também, num tempo em que era raro falar-se em “saúde mental” e o rap era coutada de machos e durões, foi provavelmente a primeira exposição, franca e tragicómica, de sofrimento, autodepreciação, instabilidade psicológica. Sonicamente heterodoxo, experimental e distinto de tudo o que se fazia à data, eis um dos momentos mais inventivos na história do rap português.

Pródigo & Víruz Dentes de Ouro & Flow de Platina (Sistema Intravenoso, 2011)

Uma das editoras independentes mais antigas no meio, com epicentro em Évora, a Sistema Intravenoso ofereceu naquele que foi o seu quarto lançamento talvez o melhor disco de punchline do burgo, mesmo se bastante mal conhecido. Fruto do alinhamento dos astros-pugilistas Pródigo (Évora) e Víruz (Malveira), trata-se de um chavascal de egotrip e humor servido por um léxico e um compêndio de referências populares profundamente imaginativos. Nem sempre devidamente lembrado é o fabuloso trabalho de Syn (à data Syniko), responsável pelos beats gordos, gordíssimos, funkíssimos, que se volvem ainda mais viciantes quando tomados de assalto por um batalhão que inclui, nessa monstruosa posse cut que é Os maus da fita, os serial killers TH, Blasph, Bob O Vermelho e Nerve. “Dentes de Muhammad Ali e flow de Richard Pryor”, eis um título alternativo para esta pérola.

Regula Gancho (Superbad, 2013)

Regula sempre viveu bem com o pecado original de não fazer rap “de intervenção”, mandamento quase obrigatório vindo dos anos 90. Mas também não preenchia o caderno de encargos de rapper comercial para o airplay radiofónico. O que era, então? Um tecnicista de egotrip e braggadocio, um punchliner com perfume de gangster capaz das tiradas mais desconcertantes e/ou obscenas; um Bocage nascido nos Olivais e criado no Catujal. Gancho foi o burilar até à perfeição de um estilo que só ele tinha coragem de fazer no país, mas agora com um salto fundamental: uma produção orelhuda e potentíssima (a anos-luz do classicismo então predominante) e um trabalho de mistura sem o qual o disco com mais ad-libs na história do rap português não soaria ao banger que é (o primeiro digno desse nome por cá). Há um antes e um depois de Gancho, que não só fez do músico a primeira verdadeira estrela do rap português, como legitimou definitivamente um tipo de rap junto de puristas e miúdos que só queriam fazer o que lhes dava na gana (ProfJam é o caso mais evidente). Sobre o machismo de que não raras vezes foi acusado (conviria distinguir, para cada caso concreto, entre misoginia e obscenidade, sexismo e devassidão, mas isso é tarefa demasiado trabalhosa para os censores actuais e seus double standards), a resposta chega em Kills bills: “If people try to emulate what I rap about, why does that make me guilty? Nobody blames Bruce Willis for all the people he killed in ‘Die Hard!’”.

Sam The Kid – Pratica(mente) (Edel, 2006)

Se fosse simplesmente um objecto físico, já teria entrada garantida nesta selecção. O booklet que acompanha a edição discográfica, no qual se encontram escrevinhadas, para cada tema, lado a lado com as ilustrações, o processo criativo e pequenos episódios ou historietas pessoais com ele relacionados, é um tesouro à espera de ser uma e outra vez redescoberto. Como uma caixinha preciosa, nele se encontram o lirismo e a doçura, a inteligência e prodigiosa criatividade que fazem unanimemente de Sam The Kid a figura de proa da cena portuguesa. Foi a primeira vez que, além do seu habitual espaço doméstico, STK produziu em estúdio, dessa junção resultando aquele que continua a ser o mais conseguido disco onde beatmaking e instrumentação tradicional se conjugam. Melhor do que um Pratica(mente), só o facto de haver “dois”: a reedição de 2008 juntou um “lado B” composto de remisturas e inéditos que não ficaram no original. Sim, Samuel Mira deu-se ao luxo de deixar de fora preciosidades como O beat matou-te, Jungle fever, Quantidades ou O keu sou.

Valete – Educação Visual (Horizontal, 2002)

Meio Portugal ficou a conhecê-lo com Fim da Ditadura, a outra metade com Roleta Russa. Mas antes disso já Valete se afirmara tonitruantemente por um agudíssimo olhar sociopolítico (Nossos tempos, À noite) aliado a um domínio arrasador da palavra, a qual, na sua performática voz, foi submetida a um vasto manancial de nuances, flows, efeitos sonoros (o semifalsete e o anasalamento os mais evidentes). Hiperconfiante (o humor e a egotrip sempre lhe foram queridos), foi o primeiro a explorar verdadeiramente as potencialidades do instrumento vocal. À época invulgarmente letrado, o disco crismou-o como rapper de intervenção por excelência (dos primeiros a trazer, juntamente com Chullage, mais do que o racismo, a questão pós-colonial para cima da mesa), mas um politicamente incorrecto (Nada a perder, crónica sobre os desapossados sem preocupações de boa consciência, é um tema que hoje poucos ousariam). Despudorado, moralista, profundamente contraditório, escutá-lo nos dias neopuritanos de hoje é uma experiência ainda mais cortante do que à data de lançamento.

Virtus – UniVersos (6.º Sentido, 2012)

O álbum mais importante da última década celebrou dez anos em 2022, mas permanece demasiado na sombra. Fruto também do perfil discreto do seu autor, que desde então não voltou com novo disco. Trabalho que pôs a crew/editora portuense Sexto Sentido no mapa, é um portento poético de lenta, muito lenta, degustação. Depois de já ter deixado fortíssima impressão com o EP Introversos (2008), João Rodrigues assinou um delicado trabalho, por si integralmente produzido, que, mesmo se objecto de admiração entre pares, ainda não encontrou filhos à altura – talvez porque a sua profunda singularidade simplesmente não o consinta. Uma volta pelo YouTube e seremos bombardeados com comentários reivindicando que determinados temas deveriam ser matéria de estudo nas escolas. Inesgotável a cada escuta, UniVersos é um dos raros casos que merece realmente essa consideração. Calvino escreveu sobre este tipo de objectos: Porquê ler os clássicos?.

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