Catarina Furtado sobre Sara Tavares: “Ela tinha a preocupação de toda uma lusofonia”

A memória e o legado de Sara Tavares nas palavras da apresentadora do programa que lançou uma cantora adolescente para uma carreira singular.

A concorrente e vencedora do concurso da SIC "Chuva de Estrelas", Sara Tavares, ao lado da apresentadora Catarina Furtado, no espectáculo de apresentação dos 12 finalistas, realizado no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a 22 de abril de 1994.

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Sara Tavares e Catarina Furtado no espectáculo de apresentação dos 12 finalistas de Chuva de Estrelas, 22 de Abril de 1994 Inácio Rosa / Lusa
Afro-Portuguese singer/songwriter Sara Tavares performs with her band at 'Between Portugal and Cape Verde,' a World Music Institute/Carnegie Hall concert at Zankel Hall at Carnegie Hall, New York, New York, November 13, 2009. (Photo by Jack Vartoogian/Getty Images)
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Sara Tavares no Zankel Hall, Carnegie Hall, em Nova Iorque, 2009 Jack Vartoogian/getty images
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Uma jovem cantora revela-se num Portugal encandeado pela sociedade-espectáculo num programa de uma jovem apresentadora. Depois, bifurca-se o caminho mas não a ligação entre ambas. A memória e o legado de Sara Tavares pela apresentadora da RTP e embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA).

A Sara era metáfora. Dizia tudo de uma forma verdadeiramente poética, nunca fazendo esforço algum. A Sara tinha um mundo à parte. Era algodão-doce.

Ela é também, obviamente, uma inspiração. Tudo começou quando fizemos o Chuva de Estrelas e ela nunca teve vergonha de ser um programa de talentos — antes pelo contrário. Mas depois teve uma coragem absolutamente única. Nunca teve medo de dizer que não. De dizer: Isto não sou eu. Eu não sou essa pessoa. Eu não quero isso para mim. Só teve medo de morrer. Mesmo assim, agarrou-se muito a Deus.

E ela tinha 15 anos. O regulamento do Chuva de Estrelas nem sequer permitia que ela pudesse entrar. Estávamos na Tobis [antigos estúdios cinematográficos], onde foi feito o casting do primeiro Chuva de Estrelas. Eu fazia questão de ouvir os castings todos. Até que ouvimos uma cassete. Que tinha a voz da Sara. A Sara nem sequer tinha capacidade financeira de vir do Pragal, Almada, para Lisboa fazer o seu casting. Mas na escola secundária onde ela andava todos fizeram a chamada vaquinha para comprarem a cassete e gravaram, usando o gravador da associação de estudantes. Na altura percebemos que não havia mais ninguém. Não era possível. Não era possível aquela voz, aquela naturalidade, aquela luz. A Sara tinha luz na voz. Não era só ela que era luminosa no sorriso e na forma como olhava com aqueles olhos grandes.

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Sara Tavares e Catarina Furtado no espectáculo de finalistas de Chuva de Estrelas, 22 de Abril de 1994 inácio rosa/lusa

Ultrapassámos o regulamento e houve um vizinho que a acompanhou até às gravações. Quando vence e ganha o prémio monetário, pegou no dinheiro e fez obras na casa da avó emprestada”, com quem vivia. Nem pensou duas vezes.

O António Zambujo disse [no The Voice Portugal, neste domingo à noite] uma verdade que eu sempre senti: mesmo quando ela era Whitney Houston — e ela adorava a Whitney Houston, fui várias vezes a casa dela, da avó emprestada, e ela tinha o quarto forrado —, ela nunca deixou de ser uma Sara. Ela tinha mais, tínhamos de a conhecer melhor. Ela era embrulhada por uma manta de mistério, que é fundamental para criar um carisma e uma empatia com o público.

Depois seguiu-se o Festival da Canção e mesmo aí ela dizia-me que não estava feliz. Querem vestir-me de uma forma… Eu senti um paralelismo, porque quando comecei, tinha 19, 20 anos, também queriam vestir-me assim ou assado, pôr assim ou assado, e foi quando decidi ir para Londres estudar, porque não queria que me formatassem. A Sara tinha isso, e foi imprescindível. A Sara era um ser livre.

Lembro-me de uma das primeiras conversas que tivemos após ela ter dito: Não é isto que eu quero. Fez uma incursão pelo gospel, à procura do deus dela. Ela dizia: As minhas raízes chamam-me. Há muita coisa que eu não conheço, que eu não pisei, mas tenho constantemente chamadas das minhas raízes. Tenho essa obrigação porque não vou ser completa se não for à procura delas. E a partir desse momento teve uma total dedicação à procura, à pesquisa. Que demora.

A Sara não era deste mundo. Toda esta coisa fútil das imagens, das redes sociais, do que é o suposto sucesso. Ela tinha uma definição de sucesso que subscrevo inteiramente: o sucesso é aquilo que é honesto dentro do nosso coração. Muito dinheiro, popularidade, audiência, discos vendidos? Não. Ela era tão contracorrente que desligou a máquina mediática, as muitas solicitações que tinha, porque estava muitas vezes na sua pesquisa e isso é uma inspiração.

“Agora vou, Cati. Agora vou à procura.” E essa procura e encontro das histórias luso-africanas foi profunda. Ela tinha a preocupação de toda uma lusofonia. Sei quem está a sofrer muito neste momento também — é o Dino d’Santiago, porque eles têm uma responsabilidade, que puseram em cima de si. A Sara era uma corajosa e associamos a palavra “coragem” às guerreiras, às pessoas duras que têm uma palavra quase bélica a dizer; ela era o contrário, era uma corajosa extremamente doce. E isso tirava-nos o chão.

Portugal devia ter feito mais pela Sara do ponto de vista do reconhecimento. Sobretudo por alguém que tão facilmente compunha e cantava mas tão dificilmente caminhou. Era de uma graciosidade a forma como ela deitava as suas palavras e a sua música, a sua doçura, a sua luz, cá para fora, mas a vida da Sara foi muito dura, muito difícil. E ela não queria nada que isso se sobrepusesse à música. A Sara só era feliz a cantar. Ou a compor. A olhar para as pessoas para lá daquilo que aparentam, um dom tão único e especial.

Os discos e as músicas dela têm de ser ouvidos. Há várias mensagens que ela nos deixa. A música Eu sei é muito autobiográfica, e mais uma vez recorre a Deus para acalmar a sua inquietação e as suas dores. É bonito também ouvirem as canções de embalar da Sara, que são mágicas, mágicas.

Ela nunca deixou de compor, nem quando perdeu as faculdades de comunicação. O seu maior terror, mesmo quando foi operada pela primeira vez, há cerca de dez anos, era que a operação lhe tirasse a voz. Mas depois, e isto é um alerta, com a covid-19, não teve o seguimento devido.

Era uma feminista, era uma humanista acima de tudo. A Sara era contracorrente mas depois muito abrangente, muito transversal. Não cantava o que era mais óbvio, não vestia o que era mais óbvio, não se dava com quem era mais óbvio. Esse pontinho de luz de que se fala tanto tinha uma tristeza por trás. Devia ter sofrido menos, devia ter vivido mais, devíamos tê-la ouvido mais.

Testemunho recolhido e editado por Joana Amaral Cardoso

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