Desde que editou "Balancê" em 2005, Sara Tavares atravessou a Europa e passou pelos EUA dando um total de 120 concertos, chegou a rádios como a BBC, a jornais como o "Guardian", a revistas como a "Sound Roots", a sites como o World Music. E no entanto, nada disto parece deixá-la propriamente entusiasmada, menos ainda se nota alguma vaidade quando fala da segunda fase da sua já longa carreira.
"Balancê" foi tão bem recebido que "Xinti", o seu mais recente disco, ainda nem saiu e ela já tem uma imensa lista de concertos marcados até finais de Setembro que a levarão por Inglaterra, Holanda, Bélgica, Alemanha e Espanha. "Há etapas na construção de uma carreira lá fora, que têm de ser conquistadas uma a uma. Neste momento ainda estou nessa fase. O mundo é grande e país a país vai-se conquistando", diz, acendendo um dos escassos cigarros de enrolar que fuma ao longo de uma hora de conversa. Ela é tão doce a falar quanto a cantar, mas a calma não impede que seja decidida.
É, de facto, uma história no mínimo fora do comum. Sara surgiu em 1994, quando participou num daqueles concursos televisivos em que desconhecidos cantam canções dos seus ídolos. Tinha apenas 15 anos e ganhou um Chuva de Estrelas com uma versão de uma canção de Whitney Houston, que, na altura, admirava. Se tudo corresse como normalmente, desapareceria em pouco tempo, deixando um ou outro disco que ninguém ouviria.
Uma segunda vida
Quando gravou o primeiro álbum, um disco de gospel chamado "Sara Tavares e os Shout", a música negra americana ainda era o seu amor - mas o simples facto de ter feito um disco de gospel em vez de versões de baladas de Céline Dion poderia ter indicado aos mais atentos que a rapariga queria fazer as coisas à sua maneira. Esteve três anos sem gravar, editando depois "Mi Ma Bô", que pouca gente há-de ter ouvido. Esperou seis anos até lançar "Balancê", o disco que mudou por completo a percepção que o público tem da sua música.
Vagamente assente na música cabo-verdiana, com melodias simples a espraiar-se por ritmos dolentes, "Balancê" foi um surpreendente êxito, tanto nacional como fora de portas. Lá fora não sabem bem se ela é portuguesa ou cabo-verdiana e alguns textos, de forma sensata, optam por chamar-lhe um produto da diáspora. Tudo isto é surpreendente, se tivermos em conta que no mundo da pop ninguém costuma ter direito a uma segunda vida.
A primeira, foi menos glamourosa: começou em Almada, onde os pais se instalaram nos anos 70. Nascidos em Cabo Verde, vieram para Lisboa numa das vagas de emigração destinadas a suprir falta de mão-de-obra em tarefas específicas. "O meu pai trabalhava na construção civil, a minha mãe era empregada doméstica", diz, acrescentando depois que são "15 irmãos" no total. Ela não prolonga a conversa acerca do seu crescimento, mas ao "Guardian" disse que a infância foi "solitária". Em casa, a mãe "nem sequer falava português" com ela. Sara "respondia-lhe sempre em português", porque "é mais fácil para a integração" dominar bem a linguagem de chegada.
Sara sempre entendeu crioulo, mas começou a falá-lo muito tarde. Foi pouco depois de conquistar a Chuva de Estrelas: "Viajei para Cabo Verde numa comitiva oficial, liderada por Cavaco Silva, na altura primeiro-ministro. Quando se vai a Cabo Verde, é obrigatório aprender crioulo, porque é o que toda a gente fala. No interior de Cabo Verde quase não se fala português. Fala-se, quando muito, nas repartições, na escola".
Gostou à primeira de de Cabo Verde, sentiu "que também pertencia ali". Esteja a ser politicamente correcta ou não, hoje diz pertencer "aos dois lugares": "Para morar prefiro estar aqui, porque tenho tudo o que preciso, mas em termos de temperamentos, gosto mais de Cabo Verde". Ela não tenta florear a sua relação com Cabo Verde para obter dividendos. Admite que não se sente "representante da música cabo-verdiana", preferindo considerar-se como "parte de uma geração de jovens da diáspora de Cabo-Verde". "Sou cabo-verdiana pela cor de pele, pela língua e pela história, mas também sou portuguesa. Nasci cá."
À maneira dela
Mas a dificuldade de a situar existe e "às vezes surge aquela questão: fazem-se cartazes a promover o disco como "Música nova de Cabo Verde" ou "Música nova de Portugal'?" Estas questões, diz, "têm a ver com o universo social da 'world music', que vende o exotismo". Sendo que é o mercado da "world music" que a sustenta, ela poderia ser a-crítica, mas é a primeira a dizer que "a 'world music' tem um lado de turismo ocidental sem sair do país". Tem razão: no mercado da "world music" vende-se por vezes mais uma ideia de autenticidade que a própria música. "Isso incomoda-me menos do que devia porque vejo muitas artistas bons a romper graças a isso", diz, com honestidade..
Não pode, claro, fazer uso dessa mais valia, porque a ligação à cultura cabo-verdiana não é a mesma de quem lá nasceu. "Não tenho ligação à música cabo-verdiana da tradição como vivente, não cresci com ela. Tenho como ouvinte, o que é diferente". Não tem, assume, interesse em fazer música tradicional, ser uma herdeira de Cesária. "Uso instrumentos tradicionais, mas não os uso ao mesmo tempo, porque não é esse o meu papel. Sinto-me melhor no papel de quem usa isto para fazer algo de fresco".
Apesar disto, tem preferências na música cabo-verdiana, e essas são tradicionais, "como o Paulinho Vieira, o B.Leza, o Eugénio Tavares, os Bolimundo, que foi um grande grupo de funaná, o Tito Paris, o Boy Ge Mendes, o Bana e a Cesária, claro".
Daqui, o que ela aproveita é "o balanço". "Eu brinco muito com o balanço. Acabo por usar o funaná, o batuque, a coladera, mas acabo por fazer tudo à minha maneira. Faço uma releitura pessoal dos géneros". Toda a sua música diz respeito a essa ideia de "releitura pessoal". O que faz, diz, "tem a ver com criar um reportório que tenha a minha cara". Essa é a razão porque não canta tradicionais nem música de outros compositores. "Se encontrar um compositor que faça isso, canto as canções dele. A minha abordagem de composição é muito particular".
Exemplifica, com recurso a "Xinti", o novo disco: "Tem tanto Cabo Verde quanto o anterior: está lá tudo, mas de forma mais subtil. Sendo que o que há de Cabo Verde em mim, já é reinventado. Mesmo o meu crioulo não é puro, misturo várias variantes".
É um disco tão ou mais calmo que o anterior, ou "ainda mais parado que o último". A lentidão não era objectivo, foi consequência: "O meu processo de composição é totalmente espontâneo: pego na guitarra e deixo-a falar. Depois dar os concertos [de promoção de Balancê] caí num certo estado de espírito de descanso, daí este disco ser mais calmo".
É, indubitavelmente, uma figura do seu tempo, pouco interessada em usar vestidos tradicionais para vender uma ideia de "real thing". Faz a música que faz, mas gosta de ouvir Fela Kuti, Chet Baker ou Chavela Vargas. Veste-se como uma rapariga da sua idade. A sua abordagem à música pode ser sintetizada numa frase sua: "Estou a ouvir um reggae e o que ouço lá dentro é um semba [música tradicional angolana]. Acabo por descobrir as semelhanças entre os ritmos e dou por mim a tocar por cima". É assim que a música lhe nasce.