Sobre as urgências, há 33 anos…

Este artigo, com alguns cortes, foi publicado no PÚBLICO de 8 de Agosto de 1990. Infelizmente, não perdeu muita actualidade.

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O problema maior das urgências é terem disfunções próprias, mas reflectirem, ao mesmo tempo, as que existem a montante a jusante no sistema de saúde. No entanto são o último recurso dos doentes e onde eles vêm os seus problemas resolvidos. Mas quais são essas disfunções?

Em primeiro lugar, a sua incrível superlotação, que não pára de crescer. Na Área Metropolitana de Lisboa, enquanto a população aumentou nos últimos 30 anos cerca de 70 por cento, o recurso às Urgências nos hospitais centrais elevou-se, no mesmo período, em 696 por cento. Este número representa 2136 doentes atendidos por dia, nas três grandes Urgências de Lisboa.

Em segundo lugar, a incompatibilidade gerada entre continente e conteúdo. Esta decorre do primeiro ponto e do pouco que foi feito para o solucionar. Na realidade, a criação em 1987 do terceiro Serviço de Urgência da Área Metropolitana de Lisboa, no Hospital de S. Francisco Xavier, apesar de ter absorvido no ano passado 152.584 doentes (cerca de 20 por cento), ficou muito aquém das necessidades.

Para além do problema dos espaços, persiste o da insuficiência de pessoal. Os hospitais centrais têm quadros completamente desactualizados que tardam a ser dilatados (…).

Em consequência deste estado de coisas, a qualidade de atendimento dos doentes tem-se degradado, a par das condições de trabalho dos profissionais de saúde. Apenas o esforço sobre-humano e o sentido ético de médicos, enfermeiros e outro pessoal têm conseguido que nos equilibremos na corda-bamba, evitando a queda no descalabro, sempre iminente. O preço é, para nós, uma crescente sobrecarga física e psicológica, o risco aumentado de erro e de omissão, com as consequentes penalizações de consciência e outras e, para os doentes, os resultados variados de não serem bem tratados.

Porque chegámos nós a esta catástrofe instalada?

Apesar de correr o risco de ser redutor, apontaria o que me parecem ser os quatro factores principais.

Em primeiro lugar, a total falência do sistema primário de Saúde. Longe vai o tempo em que os médicos assistentes acompanhavam o doente à Urgência e o evoluir da sua situação durante o período de internamento. (…) E, no entanto, a maior parte das situações que aparecem nas Urgências seriam facilmente resolvidas nos próprios Centros de Saúde, pelos médicos assistentes, secundados por escasso equipamento.

O segundo factor diz respeito à própria organização centralizada da Urgência. A Área Metropolitana de Lisboa não necessita de mais do que dois ou três hospitais com equipas multidiferenciadas, em permanência, para atender as grandes urgências, como sejam os politraumatizados, queimados, enfartes de miocárdio e outros. Necessitam para tal de pessoal treinado, de equipamentos sofisticados e unidades de apoio. No entanto, cada um dos outros hospitais de proximidade deveria ter capacidade de atendimento permanente dos doentes urgentes da sua área de menor gravidade. Se fosse caso disso, poderiam ser internados nas enfermarias, onde receberiam assistência durante as 24 horas do dia. Isto exigiria a possibilidade de acesso permanente a exames auxiliares de diagnóstico e de recurso a médicos especialistas em regime de chamada. Estas Urgências dever-se-iam articular eficazmente com os Centros de Saúde da zona, que até agora têm vivido de costas voltadas para os hospitais.

O terceiro factor tem a ver com a dificuldade de drenagem da Urgência. As enfermarias de medicina estão em muitos casos preenchidas com velhos, porque os lares não têm condições para os tratar ou porque aguardam vaga em algum, ou ainda porque esperam que a Misericórdia resolva o seu problema. (…)

O último factor é representado pelo acréscimo de informação dos meios disponíveis da Saúde e de uma maior consciência do direito ao seu acesso que se tem sedimentado positivamente na população portuguesa.

Cabe agora perguntar de quem é a culpa?

A resposta que me parece mais correcta é a de que ninguém está isento neste processo.

Nós médicos, que mercê de anos e anos de convivência diária com esta realidade, elevamos o nosso limiar de sensibilidade e habituamo-nos a trabalhar como se de um teatro de guerra se tratasse. Depois de muitas denúncias, já nos vamos cansando de esbarrar no muro nacional que ainda falta derrubar: o da indiferença desta gesta de iluminados que nunca se enganam e raramente têm dúvidas. Honra seja feita a algumas bolsas de resistência que ainda persistem.

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Edição de 8 de Agosto de 1990, página 19 DR

A nossa Ordem também tem as suas responsabilidades. Tem-se mostrado mais interessada em manter privilégios de representatividade perante o Estado do que em aprofundar e denunciar os problemas éticos da interacção dos médicos com as condições em que trabalham.

Os doentes, que aceitam como fatalidade os prejuízos, às vezes definitivos, que sofrem.

Os detentores do poder, finalmente, que umas vezes encobrem, outras utilizam bodes expiatórios, mas raramente tiveram coragem e nunca tiveram projecto para fazer a reviravolta necessária. Num caso, assistiu-se à geração de tensões, à desestruturação da relação médico-doente, à propaganda falsa, ao desbaratar de capital político, para afinal se resolverem apenas “fait divers” no campo da Saúde. Noutro, corre-se para soluções consensuais de conjugação de interesses, às quais duvido tenha presidido a intenção sincera de melhoria da qualidade da Saúde (…).

“Saúde para todos no ano 2000”? Tenhamos esperança, porque em 1990 continua a ser só mesmo para alguns.

Artigo publicado neste jornal em 8 de agosto de 1990

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