Quando Peter Richards e a sua mulher repararam que, sob o beiral da sua casa de campo, em Bedfordshire, Inglaterra, dois jovens procuravam, em vão, refúgio da chuva, não hesitaram. Convidaram os rapazes a entrar, ofereceram-lhes um chá quente e permitiram que secassem as suas roupas encharcadas.
Estava-se em 1955 e os rapazes eram David Hockney e Norman Stevens, estudantes da Escola de Artes de Bradford. Encontravam-se junto à casa dos Richards porque tentavam apanhar uma boleia para Londres, onde pretendiam visitar uma exposição. Para agradecer o gesto, que lhes aqueceu o corpo e a alma, Hockney ofereceu ao casal uma cerâmica feita por si: um gato a preto e branco, como o seu animal de estimação Moggy. O que nenhum deles podia imaginar é que David Hockney, pintor, cenógrafo, fotógrafo, viria a inscrever o seu nome entre os maiores artistas ingleses do século XX.
Agora, o objecto, que é um dos seis gatos produzidos pelo artista em 1955, quando ainda era apenas um estudante de arte, foi levado a leilão, tendo sido arrematado por 89.500 libras (102.910€). Um valor que fica muito aquém da peça mais valiosa de Hockney (90,3 milhões de dólares em 2018; 76,5 milhões de euros ao câmbio da época), mas que resultou numa surpresa.
A escultura do animal, com cauda alongada e erecta, é apontada como a primeira de um gato feita por David Hockney. Com 38cm de comprimento, 35cm de altura e 12cm de largura, o gato foi vendido com o desenho original e uma carta de Hockney ao vendedor, que denominou a peça como o “gato da bondade”.
“Foi um resultado fantástico para o vendedor que estava presente na sala e que estava a leiloar os artigos de Hockney para beneficiar os seus netos”, afirmou Mark Stacey, da Stacey's Auctioneers & Valuers, que vendeu o artigo, num comunicado enviado por e-mail e citado pela Artnet, site que se dedica ao mercado da arte.
Peter Richards, que já soma mais de 90 anos, disse que tinha decidido que era a altura certa para vender o ornamento para ajudar as gerações mais novas da sua família.
Nascido em 1937 em Bradford, Inglaterra, David Hockney estudou na escola artística local entre os 16 e os 20 anos, mudando-se em 1959 para Londres para frequentar a Royal College of Art. Começou aí a traçar um percurso multifacetado que viria a torná-lo um dos artistas britânicos mais consagrados do século XX.
Hoje, com 86 anos, vive perto da aldeia francesa de Beuvron-en-Auge, na Normandia. Uma mudança que explicou numa entrevista ao Guardian, em 2022, considerando que o seu tempo “foi a época mais livre, provavelmente de sempre”. E concluiu: “Percebo que acabou, por isso fechei-me numa bela casa na Normandia onde posso fumar e fazer o que quiser. E é lá que vou ficar.”
Por felina coincidência, a vida e obra de Hockney poderá voltar a ser apreciada em breve em Londres. A colecção em questão, que já foi exposta, mas teve vida curta (20 dias) por ter sido cancelada com a chegada da pandemia, ocupará a National Portrait Gallery, em Londres, de 2 de Novembro a 21 de Janeiro.
Drawing from Life (‘desenhar a partir da vida’), explica o museu, “explora o trabalho do artista ao longo das últimas seis décadas através dos seus retratos íntimos de cinco pessoas — a sua mãe, Celia Birtwell, Gregory Evans, Maurice Payne e do próprio artista” — e integra “mais de trinta novos retratos”, que, “pintados a ‘partir da vida’, mostram amigos e visitantes do atelier do artista na Normandia”.
O “gato da bondade” não deverá dar aqui um ar da sua graça, mas talvez apareça um ou outro gato e, claro, sendo retratos íntimos, não faltarão pequenos e grandes gestos de gentileza. Obviamente, tratando-se de Londres, é certo e sabido que também a chuva não faltará.