Esquerda solidária com Guterres, direita condena e PSD satisfeito com “clarificação”

Partidos dividem-se na reacção às declarações do secretário-geral da ONU, que disse que o povo palestiniano tem sido sujeito a uma “ocupação sufocante”. BE vai entregar um voto de solidariedade na AR.

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António Guterres é secretário-geral das Nações Unidas desde 2017 EPA/JUSTIN LANE
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O PS e os partidos à sua esquerda estão de acordo – assim como o Governo e o Presidente da República – com o teor das declarações que o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, fez sobre o conflito entre Israel e o Hamas, na abertura de uma reunião do Conselho de Segurança da ONU, em que afirmou que os ataques do Hamas “não surgiram do nada”. À direita, o Chega pede a demissão do secretário-geral da ONU e a Iniciativa Liberal condena as declarações do antigo primeiro-ministro. Já o PSD admite ter havido "uma frase menos feliz" que, entretanto, o próprio Guterres já clarificou recuperando margem para manter "capacidade de diálogo" com todas as partes.

Na intervenção que proferiu, António Guterres disse que “é importante também reconhecer que os ataques do Hamas não aconteceram num vácuo" e lembrou que "o povo palestiniano tem sido submetido a 56 anos de ocupação sufocante". O embaixador de Israel junto das Nações Unidas, Gilad Erdan, não perdeu tempo a pedir a demissão do secretário-geral das Nações Unidas, acusando-o de estar “completamente desligado da realidade” e de ver “de forma distorcida e imoral o massacre cometido pelos terroristas nazis do Hamas".

O PÚBLICO fez uma ronda pelos vários partidos para saber como interpretaram a intervenção do antigo primeiro-ministro português, que esta quarta-feira já reagiu à polémica, manifestando-se "chocado com as interpretações erradas" das declarações que fez no Conselho de Segurança e negando ter justificado os actos de terror do Hamas.

O PS, em comunicado enviado às redacções, "manifesta a sua total solidariedade com a intervenção do secretário-geral da ONU, António Guterres, no Conselho de Segurança das Nações Unidas". Já o deputado e vice-presidente da bancada socialista, Francisco César, considera “razoável” que Guterres tenha abordado a questão numa altura em que se discute a guerra. “Subscrevemos integralmente a interpretação e as declarações do secretário-geral da ONU, porque a interpretação que faz e as declarações que proferiu são claras”, afirma Francisco César.

"Sem deixar de condenar as acções do grupo islamita do Hamas, sem deixar de condenar o terrorismo em todas as suas formas, sem deixar de dar uma palavra em relação aos reféns que têm de ser libertados imediatamente, também é verdade que nós vamos reconhecer que há uma catástrofe humanitária a acontecer, que há civis que não têm culpa nenhuma dos actos perpetuados pelo Hamas que estão a sofrer e que o direito legítimo que um Estado tem de se defender é naturalmente coarctado pelo cumprimento de regras e regras do direito internacional”, sublinhou o deputado do PS.

Numa publicação na rede social X, a líder do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, escreveu: “Bastou dizer o óbvio para que António Guterres ficasse sob assédio do regime israelita. Face ao genocídio, são poucas as vozes que se ouvem pela paz e pelo direito internacional. O Governo devia expressar apoio ao secretário-geral da ONU. Estou solidária com António Guterres.”

O mesmo assunto levou o deputado do Livre, Rui Tavares, a considerar, também no X, que “Guterres disse que ‘nada justifica os ataques’ do Hamas". "Quem o critica por também falar da ‘ocupação sufocante’ de que são vítimas os palestinos, sabe a diferença entre justificar e entender. Mas interessa-lhe confundir e minar a credibilidade do secretário-geral da ONU. Só por si preocupante.”

Em declarações aos jornalistas, a líder parlamentar do PCP, Paula Santos, condena todos os "actos de violência que têm feito vítimas inocentes israelitas e palestinianas”, denuncia o “incumprimento das resoluções das Nações Unidas" e afirma que “há muito” que o seu partido tem vindo a colocar estas questões, inclusivamente na Assembleia da República.

"Aquilo que é necessário, aquilo que nós consideramos, é que Portugal ao nível da Presidência da República, do Governo e da Assembleia da República tem de ter um posicionamento numa perspectiva de se encontrar uma solução de paz, cumprindo as resoluções da ONU e do respeito pelo direito da Palestina. As palavras do secretário-geral das Nações vão nesse sentido", acrescentou a deputado da PCP.

PSD realça importância de manter "capacidade de diálogo"

Depois de o líder Luís Montenegro não ter reagido à polémica no final de uma audiência em Belém, os sociais-democratas reagiram através do primeiro-ministro vice-presidente do partido, Paulo Rangel. A partir de Bruxelas e em declarações transmitidas pela RTP3, o eurodeputado começou por frisar que António Guterres “não queria em caso nenhum justificar o terrorismo, ao contrário”, para depois considerar que a “verdade [é] que há uma frase menos feliz e, portanto, ela implicava uma clarificação” para que o secretário-geral possa “desempenhar bem a missão”, o que implica “muitas vezes manter a neutralidade”. Clarificação essa que Rangel considera ter sido feita já esta quarta-feira pelo próprio Guterres.

“Vimos o caso da Ucrânia, onde por vezes várias pessoas criticaram o secretário-geral, mas a forma como ele conduziu [o processo] permitiu, por exemplo, o acordo quanto aos cereais”, exemplificou, sublinhando que “isso é que é importante em diplomacia e essa é a posição oficial do PSD: que o secretário-geral mantenha a capacidade de diálogo com os envolvidos e, em particular, os responsáveis da Palestina, por um lado, e os governantes de Israel, pelo outro, e que esse capital seja recuperado depois da clarificação que ele fez”.

O social-democrata disse que o PSD está “convicto” de que Guterres poderá recuperar ou reatar aquela que é a sua missão”, frisando que aquilo “que era importante haver era uma clarificação porque se criou uma controvérsia”.

Chega pede demissão de Guterres

Se à esquerda foi generalizado o apoio manifestado ao secretário-geral das Nações Unidas, à direita as reacções foram críticas relativamente às declarações do antigo líder do PS. André Ventura criticou as palavras de Guterres, classificando-as de "pura hipocrisia política", e defendeu que a Assembleia da República deve tomar uma "posição clara de condenação" das suas declarações.

Porque mostram que o secretário-geral da ONU foi "absolutamente parcial" e que "parece estar a abraçar a causa do Hamas sem ter em conta que a primeira vítima foi o Estado israelita (...) Portugal não deve estar ao lado dos agressores mas das vítimas", afirmou o presidente do Chega.

Ventura criticou ainda o facto de António Guterres ter ido à zona de fronteira de Israel com a Faixa de Gaza e aí ter feito um discurso "que legitimou o terrorismo". "Não foi Israel que começou esta guerra, mas um grupo de terroristas."

Por sua vez, a Iniciativa Liberal condena as declarações de António Guterres, afirmando que mostraram “desrespeito pelas famílias das vítimas de um hediondo acto de terror e barbárie humana, foram politicamente insensatas e diplomaticamente catastróficas”.

Numa publicação do partido na rede social, a IL afirma: “Não há contexto que justifique as atrocidades cometidas pelo Hamas no passado dia 7 de Outubro, nem é aceitável a normalização que decorre daquelas declarações para comportamentos verdadeiramente abomináveis. Guterres afundou as Nações Unidas no pântano, retirando-lhe qualquer capacidade de mediar o conflito e de interceder em favor de todas as vítimas inocentes. Absolutamente lamentável.”

BE apresenta voto de solidariedade com Guterres

Em sentido contrário, o BE revelou que irá dar entrada a um voto de solidariedade com Guterres no Parlamento, no qual afirma que o secretário-geral da ONU fez um “exercício de coragem”. Em declarações aos jornalistas, ao final da tarde, o líder da bancada, Pedro Filipe Soares, condenou o “ataque ignóbil” contra Guterres, com quem expressou "toda a solidariedade", criticando as “decisões irracionais do governo de Israel”, como querer negar o acesso a Gaza aos representantes da ONU.

Mais: garantiu que pela parte do BE há um “comprometimento do Estado português e da Assembleia da República” com a carta das Nações Unidas, “em nome dos direitos humanos e dos valores da humanidade”. E mostrou-se "chocado" com o Chega e a IL por se terem colocado “contra a ONU e Guterres”. “Se é uma questão de política interna é incompreensível” e “se é uma escolha estrutural no que toca ao relacionamento do Estado com a ONU e a carta das Nações Unidas é deveras preocupante”, argumentou.

No projecto de voto, o BE denuncia que, “apesar de não reclamar nada mais do que o fim da violência sobre civis” e “a cessação dos crimes de guerra, António Guterres tem sido violentamente atacado”, quando “o que se exige é que se ponha um ponto final às atrocidades em curso”.

“Há momentos em que exigir a paz e o respeito pelo direito internacional é um exercício de coragem, em que exigir ajuda humanitária e o cessar-fogo é um exercício de coragem. António Guterres tem tido essa coragem”, defendem os bloquistas.

O Bloco propõe que a AR, por um lado, se solidarize com Guterres, “repudiando os ataques de que tem sido alvo por parte de Israel”, e sublinhe “a necessidade de um cessar-fogo”, de “acesso à ajuda humanitária e de condenação dos crimes de guerra”. E, por outro, que inste “Israel a não barrar a entrada de representantes e funcionários da ONU e a não vedar o seu acesso a Gaza e à Cisjordânia”. com Maria Lopes e David Santiago

Notícia actualizada com anuncio do voto de solidariedade e a posição oficial do PSD, bem como um novo título

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