Uma das reféns libertadas pelo Hamas é “activista dos direitos humanos”
“Passei por um inferno e pensei que não ia sobreviver”, disse Yocheved Lifshit, cujo marido continua na Faixa de Gaza. “Foram toda a vida activistas pela paz”, diz o neto.
As duas israelitas raptadas pelo Hamas a 7 de Outubro e agora libertadas “por razões médicas”, Yocheved Lifshit, de 85 anos, e Nurit Cooper, de 79, já se reencontraram com as famílias e receberam cuidados médicos em Telavive. “Não pensei que chegasse aqui”, disse esta terça-feira de manhã aos jornalistas Lifshit, depois de ter alta do hospital.
“Ela diz que havia um médico e isso traz muito conforto para toda a gente que lá tem pessoas que faziam algum tipo de tratamento”, afirmou a sua filha, Sharone Lifshit, numa entrevista à BBC, explicando que a mãe “quer passar informações” às famílias de outros reféns.
Lifshit e o marido, Oded, de 83 anos, foram raptados na sua casa, no kibbutz de Nir Oz, o mesmo onde se encontrava Ofer Calderon, o israelita raptado com dois filhos menores que tinha pedido a nacionalidade portuguesa, ao abrigo da Lei dos Sefarditas, e cuja família pediu o “deferimento imediato” desse pedido, por acreditar que pode ajudar na sua libertação - o pedido foi entretanto aprovado esta terça-feira. Cooper também foi sequestrada com o marido, Amiram, de 85 anos, na mesma localidade, onde viviam há quase sete décadas.
Levada numa moto, Lifshit contou agora como chegou até ao local onde permaneceu mais de duas semanas. “Andámos durante quilómetros em terra molhada. Havia uma grande rede de túneis subterrâneos que pareciam teias de aranha”, disse. “Eles conduziram por campos lavrados e durante o caminho havia pessoas que me batiam com paus. Tiraram-me o relógio. Quando chegámos lá, disseram-nos que acreditavam no Corão e que não nos fariam mal”, relatou. “Passei por um inferno e pensei que não ia sobreviver”, disse ainda.
“Havia um estudante de Medicina e também veio um médico. Estávamos lá deitados em colchões e eles cuidavam muito da parte sanitária, para não ficarmos doentes”, descreveu. “O médico vinha a cada dois ou três dias ver como estávamos. Garantiam que tínhamos tudo, foram muito amistosos.”
Antes da confirmação de que seria libertada, o neto, Daniel Lifshit, falou com a Reuters em Telavive e contou que “durante mais de uma década” os avós “levavam todas as semanas palestinianos doentes da Faixa de Gaza, não da Cisjordânia, mas da Faixa de Gaza, pela fronteira de Erez, para receberem tratamento para o cancro” de forma voluntária. “Eles são activistas dos direitos humanos, foram toda a vida activistas pela paz”, afirmou.
O casal era fundador do kibbutz (comunidade agrícola) Nir Oz, aonde tinham chegado aos 17 anos. “Ele estava muito envolvido nos direitos dos palestinianos e trabalhava pela paz com os nossos vizinhos”, disse Sharone, a filha. Oded, acrescentou Sharone, acredita que é necessário “encontrar uma forma de vivermos juntos, que isso era fácil, estava muito desiludido e combateu esta ideia da ocupação, da guerra perpétua”. “Ele fala bem árabe, pode comunicar muito bem. Conhece muitas pessoas em Gaza. Quero pensar que vai ficar bem”, afirmou. De acordo com o diário israelita Haaretz, Yocheved e Oded têm quatro filhos, 11 netos e um bisneto.
Lifshit e Cooper saíram de Gaza através da fronteira de Rafah, no Egipto, o único ponto de passagem a partir da Faixa que não é directamente controlado por Israel e por onde desde sábado tem entrado ajuda humanitária.
O Hamas divulgou um vídeo de propaganda em que se vêem homens armados com as duas senhoras, que se sentam à espera da libertação. Depois, quando se preparam para entrar na carrinha do Comité Internacional da Cruz Vermelha, Lifshit vira-se para trás e despede-se de um dos homens do Hamas, dizendo-lhe “Salam”, paz, em árabe.
“A maneira como ela se virou para trás e disse ‘obrigada’ foi incrível. É mesmo dela”, comentou a filha.
“Duas em 222 reféns”
Lembrando que os maridos de ambas continuam cativos pelo Hamas e que Lifshit e Cooper “são apenas duas em 222 reféns”, o porta-voz das IDF (Forças de Defesa de Israel), Daniel Hagari, disse que o vídeo “faz parte do terror psicológico que o Hamas usa para aparentemente mostrar que é uma organização humanitária”.
“É um vídeo cínico que não nos faz esquecer o 7 de Outubro”, acrescentou Hagari, referindo-se ao dia em que muitas centenas de membros do grupo que a União Europeia considera uma organização terrorista atacaram o Sul de Israel e mataram 1400 pessoas, assumindo durante algumas horas o controlo de várias localidades ao longo da fronteira de Gaza.
Em resposta, Israel declarou guerra ao Hamas e tem bombardeado violentamente o enclave palestiniano. De acordo com o Ministério da Saúde do governo de Gaza, controlado pelo Hamas, os raides mataram 704 palestinianos nas últimas 24 horas, num total de 5791 mortos e mais de 16 mil feridos.
Há vários países árabes envolvidos em negociações para tentar assegurar a libertação de mais reféns. Hagari agradeceu ao Egipto e ao Qatar. As primeiras reféns libertadas, na sexta-feira, eram duas cidadãs americanas – Judith Tai Raanan e a filha, Natalie Shoshana Raanan.
De acordo com o jornal The New York Times, a Administração Biden tem tentado convencer o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, a adiar a invasão terrestre de Gaza, numa tentativa para obter a libertação de mais reféns.
A imprensa israelita tem dado conta da possibilidade de o Hamas libertar os cidadãos israelitas com dupla nacionalidade e, na segunda-feira à noite, pouco antes da confirmação de que Lifshit e Cooper seriam libertadas, os media israelitas noticiaram que poderia estar iminente a libertação de 50 pessoas.