Os fundos europeus não são armas de propaganda dos governos

O aumento das transferências financeiras da UE para Portugal tem levado a uma diminuição dos poderes do Parlamento e a um aumento da preponderância do Governo na alocação de despesa pública.

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Em Portugal, de 2014 a 2020, 88% de todo o investimento público teve origem em fundos da coesão. Durante este ano de 2023, de acordo com o OE 2023, 46,8% do investimento público terá tido origem no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). E em 2024, de acordo com as estimativas da Comissão Europeia, cerca de um terço advirá do PRR ou de outros fundos europeus.

No entanto, o desenho jurídico e institucional de dois dos principais mecanismos de redistribuição financeira da União Europeia – os fundos de coesão e o PRR – atribuem ao Governo um papel preponderante na alocação dos respetivos investimentos, colocando a Assembleia da República num papel secundário, ao qual não são atribuídos quaisquer poderes vinculativos. Isto é um problema na perspetiva da separação de poderes e do escrutínio democrático.

Os fundos de coesão são distribuídos através dos chamados “acordos de parceria” e “programas operacionais”. Os acordos de parceria definem o quadro geral para a utilização dos fundos estruturais no país, enquanto os programas operacionais dividem estes objetivos estratégicos globais em prioridades de investimento e objetivos específicos. Ambos estes documentos são elaborados pela Agência para o Desenvolvimento e Coesão, I.P. (Agência, I.P.), um instituto público tutelado pela Presidência do Conselho de Ministros. De acordo com as regras europeias, o Governo apenas tem de proceder a uma consulta não vinculativa dos “stakeholders” nacionais, nomeadamente organizações não governamentais e organismos responsáveis pela promoção da inclusão social, da igualdade de género e da não discriminação. Não é obrigatório consultar a Assembleia da República.

No PRR, os desembolsos são efetuados de acordo com o cumprimento dos marcos e metas constantes do anexo ao plano. Mas, mais uma vez, foi o Governo que negociou e elaborou este plano com a Comissão Europeia, não tendo a Assembleia da República tido qualquer intervenção.

Portugal é o “país da coesão” com o maior rácio de fundos europeus em percentagem do investimento público total. Este facto, aliado ao desenho institucional e jurídico destes fundos, tem permitido aos governos de António Costa ignorar o poder orçamental constitucionalmente reservado à Assembleia da República. Na prática, o executivo tem o monopólio da atribuição dos fundos europeus.

O melhor exemplo deste enorme poder do Governo é a negociação feita pelo Governo minoritário de António Costa do PRR nacional em 2021. Essa negociação foi feita mesmo após o chumbo do Orçamento de Estado para 2022, ocorrido nesse mesmo ano. As regras europeias permitiram que um Governo minoritário em gestão após a reprovação parlamentar negociasse e alocasse um pacote financeiro de 16,6 mil milhões, entretanto já ampliado.

Este enquadramento dos fundos europeus permitiu a apropriação política da “bazuca” por parte do Governo socialista, algo evidente durante a campanha autárquica de 2021 em que o Governo se apresentava como “dono e senhor” da aplicação dos fundos europeus.

Ora, o Governo português, bem como todos os governos dos demais Estados-membros, não é dono dos fundos. Convém, aliás, lembrar que o orçamento da União Europeia é financiado exclusivamente pelos seus cidadãos, seja pelas contribuições líquidas de cada Estado, seja pelo endividamento assumido pela Comissão que acabará por ter de ser pago, ainda e sempre, pelos cidadãos. Não há dinheiro do Estado, só há dinheiro dos contribuintes.

É, por isso, importante uma revisão jurídica e institucional dos fundos europeus que reequilibre a balança entre o poder executivo e o poder parlamentar.

Esta revisão terá de partir do legislador da União Europeia. Sem ela, os fundos europeus deixam de ser instrumentos para o desenvolvimento dos países e da União para serem armas de propaganda dos governos. Não foi para isto que se fez a União Europeia.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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