Quando a caridade não permite a emancipação dos professores

Uma sociedade na qual um professor não tem onde sequer dormir tranquilamente é uma sociedade onde todos falhamos.

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A educação, à semelhança de outros sectores sociais como a saúde e a habitação, que deviam ser protegidos a todo o custo pelos representantes do poder político, sofre com vários problemas crónicos que, simultaneamente, impedem o acesso completo aos direitos de ensinar e de aprender.

Um deles, que pauta a carreira dos professores há muito tempo, é a colocação dos docentes em zonas do país completamente distintas das cidades onde habitam e têm a sua vida familiar.

Esta capacidade de afastar os garantes da educação dos sítios onde podiam realizar com melhores condições o seu ofício tem prejudicado todos os envolvidos na missão de construir sabedoria no mundo: os próprios, que vivem em intensa ansiedade e sofrimento por antecipação relativamente ao ano lectivo seguinte, que vão para lugares com poucos e precários serviços e que abandonam os seus entes queridos; e os alunos, cujos conhecimentos são passados e construídos junto de profissionais esgotados e num contexto de envelhecimento profundo.

Além da dimensão mais sentimental associada ao afastamento que um professor tem de sofrer quando, sendo do Porto, é colocado no Algarve, ou, morando em Setúbal, tem de leccionar em Bragança (podemos divertir-nos cinicamente em adivinhar que distâncias maiores existem, brincadeira que quem permite estas absurdidades deve praticar), emerge também a situação da habitação.

Um cidadão comum passa pelo desafio de conseguir arrendar casa a preços minimamente razoáveis e um professor, certamente, também passará. Pudemos deparar-nos com a situação do professor Rui Garcia que foi colocado numa escola a mais de 400 quilómetros, em Elvas, e está a viver no que chama do seu “T0”, ou seja, a sua carrinha.

A história deste docente representa uma verdadeira coragem de ter aceitado fazer chegar a educação a um meio mais rural, onde, muitas vezes, são negados direitos básicos de existência e vivência plenas no território. O interior precisa de escolas, de conteúdos e de ferramentas para que os seus alunos possam construir um país menos desigual.

Todavia, não devemos branquear com coragem, valentia ou bravura o que está espelhado neste agente educativo e limita o seu exercício profissional: a ausência de recursos e de políticas públicas bem desenhadas num país que se diz europeu em pleno século XXI.

Devemos perguntar-nos como é possível deixarmos que um professor, aquele por quem passam todas as outras carreiras, viva em condições melindrosas por falta de atenção dada à situação injusta e sem nexo dos docentes. Por que é que as instâncias políticas deixam a pedagogia de lado e recusam-se a negociar seriamente com esta classe um problema que afecta todo o sector da educação e que terá repercussões nas próximas gerações?

Uma sociedade na qual um professor tem de se submeter às condições ásperas da rua, sem sítio onde sequer dormir tranquilamente, é uma sociedade onde todos falhamos.

Quem decidiu prestar um pequeno apoio foi o Presidente da República. Marcelo foi avisado pelos seus assessores da situação de Rui Garcia e optou por lhe pagar uma noite de alojamento. Há quem defenda que este foi um gesto de humanismo (quiçá também de estratégia política contra o Governo, mostrando que o PR se importa e se encontra sintonizado com a luta dos docentes).

Outros, não tão optimistas – é mais esta a minha posição – observam nesta atitude uma espécie de caridade que não permite a emancipação dos professores, mas antes que estes, na sua jornada tão penosa, digam o seu “obrigado” por algo que acaba por não representar qualquer resolução dos problemas desta classe profissional.

É importante que este gesto de Marcelo não sirva para afastar as atenções de reivindicações que são dignas, justas e precisam de ser atendidas. Como de resto Rui Garcia acrescentou, é necessário que os professores continuem a preencher a agenda política com as suas dificuldades e as suas legítimas ambições.

Se desejamos que na escola sejam trabalhados temas tão importantes como a saúde mental, o bem-estar e os valores mais elevados da cidadania, é importante que os mesmos sejam garantidos a montante: a quem tem a grandeza de os levar ao espírito das nossas crianças e jovens.

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