Terror e imagens violentas aceleram desinformação na guerra entre Israel e o Hamas
Imagens de crimes antigos, videojogos e vídeos mal traduzidos regem discurso online sobre Israel e o Hamas. Online, as acusações de desinformação multiplicam-se e complicam a percepção dos factos.
A guerra entre Israel e o Hamas tornou-se prova da dificuldade de impedir a propagação de informação falsa na Internet, especialmente quando há imagens gráficas que despertam emoções fortes. Num dos muitos vídeos a circular online nas últimas semanas, vê-se uma jovem a ser agarrada por uma multidão furiosa antes de ser coberta por gasolina e queimada viva. No texto a acompanhar, a vítima é identificada como uma das mulheres sequestradas pelos militantes do Hamas durante o festival de música Supernova, mas as imagens, brutais, são de 2015. Bedelyn Orozco Gómez foi assassinada há oito anos, na aldeia de Rio Bravo, na Guatemala. As imagens do crime continuam a ilustrar informações falsas.
Orozco Gómez não é a única vítima cuja história é tirada fora do contexto em redes sociais e fóruns online. Fotografias de 2013 que mostram crianças sírias mortas num ataque com gás tóxico são usadas para falar do número de jovens e bebés mortos nos territórios palestinianos pelas forças israelitas. Um vídeo do TikTok de dois homens a ajudar uma criança perdida é manipulado para dar a entender que são sequestradores do Hamas. Imagens do jogo online Arma 3 são partilhadas como se fossem filmagens reais.
A cada dia que passa, consórcios de investigação como o Bellingcat reúnem mais exemplos de publicações virais falsas. Muitas são apagadas pelas redes sociais, outras passam a vir com legendas que alertam para conteúdo dúbio. Mas as imagens continuam a ser partilhadas.
“A questão aqui nem é tanto a desinformação, mas o terror. A representação do sofrimento humano e da morte está a ser disputada de uma forma nunca antes testemunhada ao nível do imediatismo, abertura e escala”, resume ao PÚBLICO Andrew Hoskins, professor de Segurança Internacional na Universidade de Glasgow que estuda, há anos, o impacto do mundo digital na guerra. “As imagens são usadas como forma de guerra psicológica”, diz.
“O objectivo é claro: mostrar que a barbárie está do outro lado”, defende o investigador Gustavo Cardoso, coordenador do Observatório Ibérico de Media Digitais e da Desinformação (Iberifier). “Com a situação no Médio Oriente, falamos de um conflito que dura desde 1948. Contrariamente ao começo do conflito na Ucrânia, há muito conteúdo que pode ser partilhado. Seja por imagens de crianças, de mortos, ou de bombardeamentos em zonas aparentemente civis. As primeiras horas após o ataque do Hamas foram agarradas pelos dois lados para galvanizar o auxílio”, conta.
“Isto é a cara diabólica dos terroristas”, “Isto é quem estão a defender”, lêem-se nas legendas de muitas publicações na Internet. Consoante o autor, os terroristas são Israel, o Ocidente, o Hamas, os palestinianos.
Perceber o que é verdade torna-se difícil e falar em desinformação torna-se uma forma de promover o caos. Os primeiros relatos, no terreno, sobre uma explosão no Hospital Árabel al-Ahli, em Gaza, que matou várias centenas de civis esta terça-feira, vinham acompanhados de alertas de que algumas das imagens usadas eram antigas.
O modelo de partilha das redes sociais aproveita-se da psique humana. “As pessoas têm uma tendência inata para acreditarem em informações que confirmam ou que correspondem às suas opiniões e crenças pré-existentes”, explica ao PÚBLICO Raquel Raimundo, presidente da Delegação Regional do Sul da Ordem dos Psicólogos Portugueses. “Quanto maior a semelhança, mais acreditam estarem perante uma informação que é verdadeira e, consequentemente, maior é a probabilidade de partilha, sem confirmar a fonte ou realizar mais pesquisas. Em psicologia chamamos a este fenómeno ‘o viés de confirmação’.”
A visualização das mesmas mensagens, repetidamente, também aumenta a probabilidade de serem vistas como verdadeiras. “Os soundbytes ficam na memória”, destaca Raquel Raimundo. “A forma como as notícias falsas proliferam assemelha-se à forma como os vírus se propagam, neste caso usando as pessoas e as suas crenças para se disseminarem, num ciclo tendencialmente inconsciente e automático.”
Apesar dos receios da utilização de inteligência artificial (IA) para alterar imagens e acelerar a produção de conteúdo falso, grande parte da desinformação sobre a guerra entre Israel e o Hamas baseia-se na reciclagem de imagens gráficas de outros conflitos.
“A desinformação não requer muitos meios”, lembra o investigador Gustavo Cardoso. “Sempre fez parte dos manuais de guerra. Para quem tem poucos meios, é uma ferramenta barata e fácil”, continua. “E hoje qualquer pessoa pode partilhar algo e mudar o seu significado.”
O factor Telegram
Os reguladores europeus põem o ónus nas grandes plataformas online. É muito fácil partilhar opiniões – e fazê-las passar por factos – em redes como X (antigo Twitter), Reddit, TikTok, Facebook e YouTube.
A Lei dos Serviços Digitais da União Europeia (UE), introduzida em Agosto de 2023, tenta mudar o paradigma, ao exigir que as plataformas de grande dimensão retirem proactivamente conteúdos ilegais, incluindo notícias falsas. Dias após o ataque do grupo militante Hamas a Israel, o comissário europeu responsável pelo mercado interno da União Europeia, Thierry Breton, advertiu as gigantes tecnológicas por detrás das maiores redes sociais para a premência de fazerem um melhor trabalho. Foi aberta uma investigação ao X depois de a plataforma se tornar um dos principais palcos de desinformação sobre o Médio Oriente.
Em comunicado, as plataformas garantem que reestruturaram as equipas para dar prioridade ao conflito. A Meta (dona do WhatsApp, Instagram e Facebook) removeu mais de 795 mil publicações em hebraico e árabe em três dias. O TikTok eliminou 500 mil vídeos numa semana. O X limitou o alcance de milhares de publicações.
Só que a desinformação continua.
Quando as publicações são retiradas de redes sociais populares devido ao conteúdo violento, dúbio ou gráfico, os utilizadores são redireccionados para plataformas com menos moderação − e mais imagens da violência. O Telegram é um exemplo.
“Não vale a pena insurgirmo-nos contra a moderação ineficaz de algumas plataformas de redes sociais, enquanto o mundo arde no Telegram”, critica o professor de Glasgow Andrew Howitz. “O meu trabalho com a guerra russo-ucraniana mostra que o Telegram é um ambiente único e emergente que quebra a relação tradicional entre a guerra e a sua representação, recolha, e distribuição através da sua dinâmica participativa.”
Nos últimos meses, a plataforma de mensagens encriptadas tornou-se uma das maiores fontes de informação rápida e imagens de conflitos em bruto publicadas por quem está no terreno: civis, grupos militantes, soldados. No caso do conflito na Faixa de Gaza, basta pesquisar “Hamas”, “Israel”, “Palestina” para encontrar exemplos. Canais de órgãos noticiosos internacionais como o El País, a BBC e o New York Times co-existem com organizações militares, serviços de emergência e grupos militantes.
Contactada pelo PÚBLICO, a equipa do Telegram defende o seu papel na propagação de informação sobre o conflito e faz notar que “não está ao alcance [da plataforma] verificar as informações”. “O Telegram não utiliza algoritmos para sugerir conteúdo sensacionalista aos seus utilizadores”, esclarece Remi Vaughn, porta-voz do Telegram. “Os utilizadores do Telegram recebem apenas o conteúdo a que subscrevem explicitamente.”
Embora a plataforma admita que alguns canais possam conter informações erradas, os relatos partilhados permitem ver “novas perspectivas sobre situações complexas em desenvolvimento.”
“No início desta semana, o Hamas utilizou o Telegram para avisar os civis de Ashkelon de que deviam abandonar a zona antes dos seus ataques com mísseis. Será que o seu encerramento ajudaria a salvar vidas?”, questiona o fundador, Pavel Durov, numa publicação partilhada no seu próprio canal do Telegram.
A verdade online
Embora existam pessoas mais atreitas a partilhar informação falsa (por exemplo, utilizadores online com menos literacia digital), ninguém é imune às redes de desinformação.
“Somos todos potenciais alvos e potenciais disseminadores de notícias falsas. Não é algo que acontece apenas ao outro, coitado, que é ignorante”, enfatiza a psicóloga portuguesa Raquel Raimundo. “A guerra é uma coisa desumana, horrível e animalesca. É uma forma de violência que destrói a própria lógica da existência humana. A ausência de previsibilidade e a incerteza provocam desconforto, apelando às emoções básicas como o medo e a tristeza.”
Nas últimas semanas, várias figuras públicas têm partilhado acidentalmente informação por confirmar. Numa reunião com líderes judaicos, o Presidente dos EUA, Joe Biden, afirmou ter visto imagens de crianças decapitadas pelo Hamas. As alegações baseavam-se em notícias e afirmações de funcionários israelitas partilhados em redes sociais e plataformas como o Telegram. Mais tarde, a Casa Branca esclareceu que nem Biden nem a Administração tinham visto imagens (ou confirmado relatos) de crianças ou bebés decapitados.
O caso foi um dos grandes alertas para o alcance da desinformação sobre a guerra. “A verdade é sempre a primeira vítima nos conflitos”, sublinha Laura Jasper, analista do Centro de Estudos Estratégicos de Haia (HCSS na sigla original), um think thank responsável pela investigação de questões geopolíticas, defesa e segurança global. “Há muito que a informação determina o resultado da guerra, tanto no campo de batalha como fora dele. No entanto, o ritmo acelerado, a profundidade e a amplitude da tecnologia das redes sociais aumentaram a complexidade e o impacto desta questão.”
A forma de ver a verdade também mudou com o aparecimento de plataformas onde qualquer um pode expor facilmente o seu ponto de vista. “Os factos continuam a importar, mas, quando as pessoas não se sentem representadas nas notícias, facilmente partilham a sua própria verdade”, esclarece Cardoso. E, quando há interesse, essa verdade pode chegar a muitos. “A desinformação tem de ter uma base sólida para se fortificar. Não vemos desinformação sobre coisas que não interessam às pessoas.”
Problema geracional
Não há uma solução fácil para lidar com a desinformação. “A única forma eficaz seria a censura, o bloqueio em massa e a restrição do acesso às plataformas. É altamente improvável que isso alguma vez seja permitido em sociedades democráticas”, problematiza Andrew Horowitz, o especialista em conflito digital da Universidade de Glasgow.
“[Refutar] informações incorrectas pode criar novos crentes ao expor as audiências às informações”, alerta, por sua vez, Joseph Somer, estudante de doutoramento e investigador do Centro Rutgers para o Desenvolvimento Cognitivo, a explorar o processo de formação de crenças. “Se ignorarmos a desinformação, isso pode indicar que não somos capazes de lhe responder”, continua Sommer. “Em suma: não sei bem como resolver este problema, mas o meu trabalho defende que os factos e as provas são importantes para as crenças”, frisa. “A longo prazo, penso que as provas são poderosas.”
O sociólogo Gustavo Cardoso também acredita em resultados a longo prazo. “O combate à desinformação faz-se com pessoas que questionam aquilo que vêem. Transformar a forma como as pessoas olham para a desinformação é um objectivo geracional”, salienta o especialista português. “Hoje fazemos reciclagem, porque há 30 anos começámos a dizer que era importante. As questões que têm que ver com as pessoas demoram pelo menos 25 anos”, defende. “Isto não quer dizer que as pessoas deixem de fazer mal, mas aos poucos começam a saber que estão a fazer mal.”
Travar o instinto para partilhar automaticamente publicações que causam choque, indignação e confusão nas redes sociais faz parte da solução. “Aos poucos, a herança de ‘ver para crer’ do apóstolo S. Tomé, da herança judaica e cristã começa a mudar”, conclui o sociólogo.
Editado: inclusão de data e local na legenda das fotografias.