Podia ser à hora de almoço, durante o lanche, antes dos patinhos ou nas manhãs de fim-de-semana. Os desenhos animados na televisão – ainda quadrada – marcaram a infância e adolescência de diferentes gerações, muito à conta das personagens, das cores cativantes, da emoção e, sobretudo, do genérico. Como esquecer o tema de abertura da Heidi, D’Artacão, Tom Sawyer ou Noddy?
Recuemos a 1993. A programação infantil na televisão era ainda dominada pela Rua Sésamo. As séries como a Abelha Maia ou Marco ainda faziam as delícias dos miúdos — em VHS. Num dado momento desse ano, surgiu na TV2 (actual RTP2) um desenho animado japonês, Oliver Tsubasa, que competia em campos de futebol que pareciam não ter fim. A série, que se estreou no Japão em 1983, saltou em 1994 para a programação do Canal 1, na versão italiana.
Ainda que Tsubasa e companhia tenham deixado o ecrã dos portugueses meses mais tarde – num interregno que durou dez anos – a caixa de Pandora dos animes estava aberta. A receita para o sucesso desses desenhos japoneses é feita de vários factores: a tal imprevisibilidade e fatalismo, que nos deixavam vidrados pelo ecrã, num misto de alegria e frustração acentuado pelas músicas épicas. Encontrávamos disso noutras séries também, como As Navegantes da Lua.
As Navegantes da Lua: as primeiras Spice Girls
Foi a 2 de Junho de 1995 que a SIC começou a emitir as aventuras de Bunny Tsukino (Usagi Tsukino no original) e das amigas. Cantavam assim:
“Lua Navegante, segue o teu rumo
Vai em ti a paixão do meu destino
Com teu poder e a tiara
E com o meu gato Luna
Vamos vencer as batalhas dessas causas esquecidas”
Foi obra do acaso, revela Mafalda Sacchetti, que gravou o tema meses antes. A cantora, filha de Paulo de Carvalho, então com 19 anos, relata que decorria mais uma noite em estúdio, entre dobragens para uma série infantil do National Geographic. Entretanto, na cabine vizinha, faltava uma voz feminina para o genérico da série de animação.
“Havia urgência, de tal modo que gravei quase tudo na primeira tentativa”, conta, salvaguardando: “À excepção do verso 'Monstros sonhos são', que é muito fácil de dizer”, ironiza. “Tive de gravar dez vezes essa parte.” Depois de a gravação ser aprovada por José Natário, responsável pela adaptação do tema, Mafalda Sacchetti voltou à cabine de onde tinha vindo, sem ideia do sucesso que a série teria. Até porque, acrescenta, os genéricos cantados em português eram algo ainda raro.
“Foi o princípio de uma nova era e nenhum de nós tinha noção do impacto que poderia causar. Na altura nem contei aos mais próximos, porque sou tímida e era só mais um trabalho. A verdade é que, 28 anos depois, ainda sou contactada para cantar esta música em eventos”, conta, entre risos.
Mas, a que se deveu o sucesso d’As Navegantes da Lua? Ao poder revelado às raparigas daquela geração, argumenta a cantora, que descreve as personagens da série como as primeiras Spice Girls. “As navegantes mostraram às miúdas que têm muito poder, foi importantíssimo”, conclui Mafalda Sacchetti.
Dragon Ball à portuguesa: a música do GT
Comprovada a receita para o sucesso do anime na televisão nacional, continuaram a chegar novas séries. Menos de um ano após o lançamento d’As Navegantes da Lua, a SIC começou a passar, em Abril de 1996, a saga Dragon Ball. Sucesso imediato, aulas interrompidas para os miúdos não perderem pitada de cada episódio, uma febre que também se espalhou pelos mais velhos. Apesar de algumas cenas violentas, a fama seguiu intocável e saiu reforçada com a estreia de Dragon Ball Z, no final desse ano.
Os dois genéricos dessas temporadas, também adaptados por José Natário, são inconfundíveis, mas o mais orelhudo – e emocionante – chegaria em Julho de 1998. “O genérico estava aquém da série. Disse aos responsáveis que queria fazer o tema da temporada seguinte”, recorda Ricardo Spínola, a voz da abertura de Dragon Ball GT e de personagens como Son Goten, Tartaruga Genial ou Freezer. Esse desejo, esclarece, não partiu de algum sonho, mas sim da vontade em valorizar o enredo da série com “uma letra mais bem trabalhada” e com uma interpretação de intensidade equiparável.
“Fui para casa, procurei as palavras certas para aquela melodia. Nem me preocupei em saber o que dizia a letra da versão japonesa, baseei-me no sentimento e na força que há no desenho animado”, desvenda Ricardo Spínola, a partir da Madeira, onde nasceu.
“GT Dragon Ball GT, guerreiro
Herói, serás sempre o primeiro
Para combater
As forças do mal
Son Goku”
Apesar dos 28 anos à época, o dobrador não se privou de seguir as aventuras de Son Goku e de mais combatentes galácticos, até porque se havia habituado, anos antes, a acompanhar Conan, o Rapaz do Futuro. Quanto às dobragens das personagens, Ricardo Spínola revela que o objectivo passou por eliminar a “monotonia” das versões japonesa e francesa.
“O japonês é mais monocórdico, ao contrário de nós, que temos uma intenção diferente na voz. O guião podia ser mais enfático”, explica. E um dos segredos para o sucesso da saga foi o aparente improviso nos diálogos, algo que Ricardo Spínola descreve como uma oportunidade para introduzir “brincadeiras e larachas à portuguesa”, que proporcionaram bastantes gargalhadas durante as gravações.
Na conversa com o PÚBLICO, o artista fez questão de comprovar que as cordas vocais continuam capazes de reproduzir as vozes das personagens. Ainda que hoje precise de “beber mais água e comer um pouco de ananás”, Ricardo Spínola garante que lembrará o timbre daqueles bonecos “até ao dia em que morrer”.
Kim Possible, a sucessora d’As Navegantes da Lua
Já estávamos em 2002 quando a SIC apostou em mais uma série de animação, desta vez produzida nos EUA, e lançada no mesmo ano: a história da brava Kim Possible, “uma miúda super pr'à frente”, como descreve ao P3 a cantora Marisa Liz, a voz da abertura da versão portuguesa da série.
“Comecei a gravar dobragens quando era mais nova, por volta dos 15 anos. Na altura da Kim Possible, [aos 19 anos] achavam que a minha voz fazia sentido para aquele genérico e foi muito fixe gravar o tema, não só pela letra, como pela força da personagem. Tive de impor uma atitude na interpretação de alguém com coragem, porque geralmente são os rapazes a salvar o mundo”, conta Marisa Liz.
Conforme relata a cantora, os incentivos recebidos em estúdio foram determinantes para atingir as notas mais altas e acompanhar o ritmo intenso. Uma prova de superação, alinhada com o espírito da série, acrescenta: “Dei notas que achava não ser capaz. Provei que tinha capacidade para ir a estúdio em oportunidades seguintes.”
Anos antes, na transição para adolescência, Marisa Liz recorda outra série que a marcou. As Navegantes da Lua, explica, “era algo raro na televisão portuguesa, porque eram as raparigas que tinham os poderes e não precisavam que alguém as salvasse”, um sentimento também patente na abertura de Kim Possible.
Passaram os Donna Maria, os Amor Electro, dezenas de concertos e discos, mas a artista ainda recorda a letra deste tema, algo que revela ser pouco comum. Consequência do orgulho no resultado, mas, sobretudo, do impacto do genérico nas gerações mais novas. E não esconde que ainda recebe convites, até na rua, para cantar alguns destes versos.
“Sou miúda para lutar
E o mundo vou salvar
Não me param
Sou a Kim Possible
(…)
Telefona para me encontrares
Com uma mensagem também dá
Em qualquer momento estou lá
Telefona para me encontrares”
Dez anos depois, Oliver e Benji voltaram
Quase dez anos depois de a transmissão da série que contava as proezas de Oliver Tsubasa, Benji Price e restante equipa ser interrompida, em 1994, a SIC recuperou o clássico. No dia de Natal de 2003 — uma prendinha para os mais novos — desvendou a versão portuguesa de Oliver e Benji.
O genérico foi criado com base na versão espanhola. A voz que o canta pertence a João Artur Guimarães, que meses antes recebera um convite para se estrear em estúdio, sem saber ao que ia. O artista revela que a adaptação do genérico foi da autoria do irmão, Artur Guimarães, e de Jorge Paupério, que desafiaram João a dar voz ao tema, acompanhado pelos coros de Isabel Carvalho, Catarina Santos e do próprio Artur, um quarteto entrosado pelos anos na Academia de Música de Vilar do Paraíso, em Gaia.
Hoje com 41 anos, João Artur Guimarães pertence à geração que cresceu com a versão japonesa e italiana da série. Assume-se, com naturalidade, como fã da história “empolgante e disruptiva”, ainda que cada remate pudesse levar alguns episódios.
“No dia da gravação fizemos alguns ajustes quanto à métrica. O ensaio durou 20 minutos e, depois, o processo foi bastante fluído, porque a letra servia o propósito [da série] e colava com a música”, recorda. Ainda assim, revela João Artur Guimarães, o verso final “O futebol é uma paixão” foi gravado com “uma entoação” diferente da espanhola. Além disso, o genérico mais curto e a presença de coros distinguem o tema das de mais dobragens, reforçando o carácter épico da narrativa.
“Acho que o Artur escolheu a dedo duas vozes femininas muito diferentes. Aquelas três vozes criaram uma densidade harmónica muito grande. Levou-me de imediato para as recordações de ver o Tsubasa a jogar. Foi perfeito”, descreve o artista, enquanto recua duas décadas na linha cronológica, até ao dia em que a série se estreou.
Naquele final de ano, João Artur Guimarães comentou o trabalho com familiares e amigos, ainda que sem a plena noção do impacto que aqueles desenhos animados teriam nas gerações futuras. Foi uma questão de meses até João Artur Guimarães deixar os estudos de Psicologia e se fixar no mundo artístico.
“Quando jogam pensam sempre em ganhar
Mas o importante é participar
Nesta festa que é o futebol
Oliver, Benji são os magos da bola
Benji, Oliver vão fazer escola
Benji, Oliver sonham ser os campeões”
O caminho que João Artur Guimarães trilhou, também o deve aos outros que vieram antes dele. O sucesso das dobragens em português deve-se, diz, ao trabalho de tradução do Rei Leão, em 1994, o primeiro filme dobrado em português de Portugal.
“A genialidade do filme foi chave. O André Maia, como Timon, e o Zé Raposo, como Pumba, atribuíram um carácter àquelas personagens que faz a versão portuguesa parecer a original, são vozes perfeitas. E é uma história que nos leva a viajar e nos marca”, argumenta. Afirma que também Shrek, na versão portuguesa com um sotaque beirão, gerou uma relação de proximidade entre a personagem e quem via o filme.
O reverso da medalha
No currículo do artista acumulam-se dobragens para séries na Netflix e no Cartoon Network, sagas como Pokémon ou Barbie, na qual é a voz do Ken há 10 anos. Mas “fama” não é um termo do quotidiano de João Artur Guimarães, que vive bem com isso. O natural é prevalecer o boneco, o genérico ou a série, e não os actores que deram voz. Não obstante, lamenta a falta de produção interna de séries de animação.
“É muito mais fácil consumir o que vem de fora. Em Portugal não faltam criativos, mas sim investimento. Este processo de criação implica tempo e dinheiro, algo que no nosso país não existe”, sublinha.
Por sua vez, tanto Ricardo Spínola como Mafalda Sacchetti visam os canais televisivos que transmitiram as séries dobradas e lamentam a falta de respeito pelos direitos conexos, ou seja, os direitos de autor relacionados com o uso da voz.
“As empresas são obrigadas a pagar à Sociedade Portuguesa de Autores, mas não à Gestão dos Direitos dos Artistas, que defende os direitos conexos ao direito de autor dos artistas. É uma luta com muitos anos, e existem imensos profissionais que não ganharam além do cachê imediato”, explica Mafalda Sacchetti.
E o panorama laboral continua a deteriorar-se, garante Ricardo Spínola. De acordo com o artista, os 80 euros por episódio foram substituídos por cerca de 25 euros e cada vez mais são contratadas pessoas “sem experiência e sem espírito” para a função. Ricardo Spínola admite que tal postura o afastou de convites para novas dobragens.
“Na última série que gravamos para a saga Dragon Ball, em 2015, negociámos com a SIC um pagamento minimamente melhor, cerca de 50 euros por episódio. Nos outros países não se ganha menos de 100 euros por episódio. Em Portugal, as pessoas têm de se sujeitar, porque também precisam de comer”, revela Ricardo Spínola.
Actualmente professora numa universidade sénior, e ainda ligada à produção teatral e televisiva, Mafalda Sacchetti considera que os desenhos animados se “tornaram mais didácticos e calmos”, de tal modo que “o ecrã da televisão tornou-se o mais tranquilo da casa”. Admite que muitos dos genéricos de outrora ainda a emocionam, como o tema do D’Artacão — mas nenhum será tão marcante como o de As Navegantes da Lua.
Se a maioria das séries referidas deixou de passar na televisão, a verdade é que, pela Internet fora, vários sites disponibilizam episódios e informações sobre a “bonecada” que nos marcou, alguns para lá da infância. Antes de estacionarmos a máquina do tempo, deixamos a pergunta: e para ti? Quais foram os genéricos da tua infância?
Notícia actualizada às 17h15 de 4 de Outubro de 2023: actualiza a informação sobre Abelha Maia e Marco