Sobre a atualidade de Eça de Queirós

A atualidade de Eça tem dois rostos, um deles vistoso, mas efémero, o outro discreto, mas muito mais consequente, pela sua intemporalidade.

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Carlos Reis: "Justamente por ter sido um grande romancista, Eça deu argumentos fortes para que a posteridade sublinhasse a atualidade das suas personagens" Adriano Miranda
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Uma das asserções mais correntes, quando se fala de Eça de Queirós, é aquela que afirma a sua atualidade. Parecendo um elogio, uma tal afirmação pode ser entendida também como limitação à grandeza do maior romancista português de sempre.

Justamente por ter sido um grande romancista, Eça deu argumentos fortes para que a posteridade sublinhasse a atualidade das suas personagens, em particular a de alguns dos tipos que configurou e que, segundo se diz, “reencontramos” nos nossos dias. Nalguns casos, estamos perante algumas das mais impressivas personagens da literatura portuguesa e mesmo para além dela, até onde alcanço.

Negar isto é desconhecer o contexto e a funcionalidade da personagem na literatura oitocentista, com menorização da dimensão e do significado de figuras queirosianas inesquecíveis. Por exemplo: Juliana e o conselheiro Acácio, n’O Primo Basílio; o padre Amaro, no romance que leva o seu nome; D. Patrocínio das Neves e o seu sobrinho Teodorico Raposo, n’A Relíquia; Maria Monforte, João da Ega e Tomás de Alencar, n’Os Maias; Gonçalo Mendes Ramires, n’A Ilustre Casa de Ramires; a díade Jacinto/Zé Fernandes, n’A Cidade e as Serras. Todos estes e ainda, noutro plano de construção, aquele Carlos Fradique Mendes que, em ambiente de finissecular, faz a transição pré-modernista da personagem fechada nos limites ficcionais do romance para uma existência autónoma e em diálogo quase explícito (às vezes, explícito mesmo) com quem o concebeu.

É isto suficiente para reconhecermos a relevância e, eventualmente, a universalidade de personagens de Eça? Penso que sim, mas, se houver dúvidas, convoco para o debate o conselheiro Acácio. Trata-se, porventura, de uma das figuras que, em toda a literatura portuguesa, mais frequentemente tem sido objeto de representações noutras artes e noutros estilos, com destaque para a caricatura, em gravura ou noutras técnicas, já para não falar de refigurações no teatro, no cinema ou na televisão. Mas não só isso. A língua portuguesa deve ao conselheiro Acácio uma palavra já dicionarizada, acaciano, vocábulo que designa o formalismo oficial (Eça dixit), a convencionalidade dos gestos e das falas e a hipocrisia moral que nele brilham. E tal como acaciano, também acácico (no dicionário Houaiss) e mesmo outros termos derivados estenderam a personagem para lá dos limites da ficção.

Parece banal, mas não é. Lembremo-nos do que significam hamletiano, edipiano, quixotesco, bovarista ou mefistofélico e aceitaremos o seguinte: começa com esse impulso para a inventiva vocabular a chamada “sobrevida” da personagem. Por alguma razão Unamuno escreveu um dia que se sentia mais quixotista do que cervantista, como se a personagem superasse o seu autor.

Julgo que, ao engendrar as suas personagens — muitas, como é natural, observadas numa realidade que a ficção modelizou —, Eça talvez desejasse cumprir o que um grande escritor ambiciona: projetar para o futuro aquilo que nalgumas delas havia de potencial transcendência, um estádio superior da chamada “sobrevida”. Digo-o como hipótese, porque não tenho a invejável capacidade que alguns possuem para penetrar na mente queirosiana, tantos anos depois da sua morte. Por isso, prefiro pedir ajuda ao escritor, para representar a convicção de que ele efetivamente buscava uma atualidade intemporal e abstrata, indo além do imediatismo que se fica por isto: a personagem A é a pessoa B. E também: os tipos queirosianos do político, do jornalista ou do poeta prolongam-se em tais ou tais figuras e situações que nos são contemporâneas.

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Primeira edição de A Relíquia, editada em 1887

Operar nestes termos é cultivar uma ideia linear da ficção narrativa, como se ela não fosse, antes de tudo, um fenómeno de linguagem. Que o mesmo é dizer, de mediação de uma certa visão do mundo e dos homens, com recurso a dispositivos de representação que desmentem aquela linearidade. Em sentido inverso, poderia dizer-se quase o mesmo, quando se trata de increpar o escritor (Eça ou qualquer outro) que, vivendo num tempo específico, com os valores que lhe são próprios, terá frustrado uma outra atualidade, ao não contemplar preocupações e temas do nosso tempo. Por exemplo: a crítica d­­o colonialismo, do eurocentrismo e do racismo ou as questões de género. Um tal reparo coloca-nos no campo do mais radical anacronismo e dos inerentes preconceitos interpretativos.

A verdade é que Eça de Queirós pensou a atualidade das suas obras e de algumas das suas personagens, mas recusou aquela ideia linear de que falei; como tal, rejeitou hipóteses de leitura condicionadas por um entendimento primariamente “utilitário” e pouco ambicioso da literatura. Recordo um episódio conhecido: em 1889, Eça escreveu uma carta pública, destinada a rebater uma acusação que lhe havia sido endereçada por Pinheiro Chagas (sempre este homem fatal!, como ele disse). Segundo tal acusação, a personagem Tomás de Alencar, d’Os Maias, seria um retrato caricatural de Bulhão Pato, um poeta associado ao segundo romantismo e àquilo a que, mais de 20 anos antes, Antero de Quental chamara a “literatura oficial”. Atualmente, de Pato tem-se apenas a memória de uma receita de amêijoas, que lhe é atribuída, mas, em 1889, não era tanto assim, de modo que Eça teve de responder.

Não procuro agora saber se, factual e empiricamente, a acusação era justa, embora eu tenha a minha própria crença que, por ser apenas isso, não vem ao caso. Interessa-me a negativa clara de Eça (ou seja, Alencar não é Bulhão Pato e será até outro poeta deixado no anonimato) e sobretudo o que vem depois. Segundo o magistral autor d’Os Maias, podemos eventualmente colher, da leitura da personagem, parecenças naturais com alguém (um romancista olha para a realidade…), no concreto dos seus comportamentos; importa, todavia, no caso de Alencar (e não só no dele, claro), reter atributos de outra natureza: “A lealdade, a honestidade impecável, a bondade, a generosidade, a alta cortesia de maneiras”, conforme Eça declara, nesse texto aparecido no jornal O Tempo. E acrescenta: “Os traços de superfície” são secundários; “o que diferença e caracteriza os homens – é o seu modo de ser moral, o conjunto das qualidades e dos defeitos”.

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Carlos Reis: "A verdade é que Eça de Queirós pensou a atualidade das suas obras e de algumas das suas personagens" ADRIANO MIRANDA

A atualidade de Eça tem, então, dois rostos, um deles vistoso, mas efémero, o outro discreto, mas muito mais consequente, pela sua intemporalidade. O vistoso: aquela atualidade que se deduz de procedimentos de identificação, como ajuda à navegação, tal como um GPS nos conduz a um lugar preciso. E assim, esta personagem era tal pessoa, este lugar ficcional continua igual, na realidade que conhecemos, uma certa ação narrativa repete-se nos nossos dias, em comportamentos que observamos. O mundo da política é, diga-se de passagem, o alvo predileto destes trajetos pseudo-interpretativos de fôlego curto, induzindo até afirmações atribuídas a Eça — mas que, em certos casos, são inventadas.

A segunda atualidade remete para grandes sentidos ético-filosóficos que transcendem o escritor, a sua obra e o seu tempo. Em romances e em contos de Eça, lemos, evidentemente, crítica social, em regime irónico e até satírico, mas devemos passar a outro nível: o da reflexão sobre o amor, os seus enganos e os seus desenganos, sobre o sentido da vida, sobre a ambição humana e as suas frustrações, sobre o desamparo dos homens (e das mulheres, claro) perante poderes instituídos, sobre a fugacidade do tempo, sobre os excessos da técnica e da ciência, sobre os apelos da Natureza, sobre o peso da História, sobre a densidade da memória, sobre as contradições da condição humana, etc. Tudo isto modelado por um estilo como outro não há.

O que aqui deixo sugerido (e muito mais) está em Eça, fazendo dele um escritor de alcance universal. Esse alcance perde-se irremediavelmente, se nos ficarmos por aquela primeira e empobrecida aceção da atualidade queirosiana. A ser assim, arriscamo-nos a ouvir de novo o mordaz pedido de Eça a Bulhão Pato, rogando “o obséquio extremo de se retirar de dentro do meu personagem”.

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