Cinquenta anos da Leica, em Famalicão, pela lente e voz dos seus trabalhadores
Em 1973, a Leica, então Leitz, instalou-se em Portugal. A exposição De Famalicão para o Mundo é uma homenagem aos trabalhadores de uma empresa que se tornou lendária. O P3 foi ouvi-los.
Era o ano de 1973. A Revolução dos Cravos estava, com o conhecimento de poucos, prestes mudar Portugal, e Francisco Magina Pedro, com 30 anos, entrava pela primeira vez nas então modestas instalações recém-inauguradas da Leica, na altura denominada Leitz, no centro de Famalicão. O seu olhar brilha tanto quanto o da esposa Julieta Hinojosa del Campo, enquanto conta ao P3 a história de amor que os uniu e que está intimamente ligada à história da empresa alemã.
“Eu sou um beirão de Gouveia que, em tempos, conheceu uma espanhola que se tornou sua mulher”, recorda Francisco, hoje com 80 anos. Conheceu a asturiana de Gijón no início da década de 1960. “Namorávamos, era assim daqueles namoricos”, conta com um sorriso. Francisco foi para guerra do Ultramar e Julieta emigrou para a Alemanha, mas isso não bastou para que se separassem ou perdessem contacto. “Escrevemo-nos durante cinco anos”, recorda Julieta.
“Quando nos casámos, a minha esposa já era trabalhadora da Leica”, refere. “Deve ser das colaboradoras mais antigas, começou em 1964.” Ainda com 17 anos, Julieta foi aprendiz na fábrica alemã, onde se familiarizou com o processo de montagem dos equipamentos da empresa. “Eu fazia o meu trabalho muito bem”, assegura a asturiana. “Em Espanha, dançava e tocava castanholas e, graças a isso, tinha bastante destreza e ritmo com as mãos.”
Após o casamento, Julieta manteria o seu trabalho na Leica por mais quatro anos, enquanto Francisco trabalhava numa outra empresa. “Até que um dia a minha mulher chegou junto de mim e disse-me que o seu chefe, que foi o primeiro administrador da Leica em Portugal, estava interessado em arranjar alguém para trabalhar na nova fábrica que ia abrir, em Famalicão.”
Francisco aceitou o desafio. O casal e os três filhos pequenos trocaram a Alemanha por Portugal no ano seguinte. Julieta esperava poder manter o trabalho em Portugal, mas a falta de uma creche ditou que se dedicasse ao cuidado dos filhos. Francisco manteve o vínculo com a empresa, que durou 30 anos. “Fui eu quem preparou os primeiros trabalhadores, em 1973.” Ao longo da carreira, Francisco, que é também cantor de fados de Coimbra, foi chefe da secção de mecânica e garante ter sido “um homem muito feliz” na Leica. Reformou-se aos 60, mas o seu filho José António continua a ser funcionário da empresa em Famalicão — é-o, aliás, há 27 anos.
Vítor Freitas, administrador da Leica em Portugal, conta ao P3 que a história de Francisco e Julieta está longe de ser um caso isolado. “Há várias famílias e várias gerações de famílias que já passaram pela Leica”, aponta. “Há casos em que começou com o avô, seguido do pai, o filho, o neto. O conceito de ‘família’ existiu sempre na Leica, no sentido literal da palavra.” E é sobre esse conceito de grande “família” de trabalhadores e ex-trabalhadores da empresa que se debruça a exposição De Famalicão para o Mundo: 50 Anos da Leica em Portugal, que foi inaugurada a 5 de Setembro na Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão, onde fica até 12 de Novembro. “Esta exposição existe para homenagear as nossas pessoas, para celebrar este casamento perfeito entre elas e a comunidade”, diz o administrador.
No interior da Casa das Artes, centenas de trabalhadores e ex-trabalhadores, acompanhados das suas famílias, completam o retrato geral da empresa que se tornou lendária pela criação e comercialização da primeira câmara fotográfica de 35mm, em 1923, que, por dar ao fotógrafo maior mobilidade, provocou uma revolução na arte fotográfica. Não é, no entanto, sobre a história da Leica, em geral, que versa a exposição patente em Famalicão, mas sim sobre a sua história no contexto da cidade.
Sobre as paredes brancas do edifício estão expostos vários conjuntos de fotografias que celebram a história e o presente da Leica, em Portugal: de um lado surgem as fotografias de arquivo que a curadora alemã Karin Rehn-Kaufmann reuniu junto dos trabalhadores, que, de forma não linear, descrevem a evolução da empresa ao longo dos anos. Imagens relativas aos primeiros anos de laboração da Leica em Famalicão mostram ao visitante como se trabalhava no interior do primeiro escritório da empresa, como se construiu a primeira fábrica e como essa se expandiu progressivamente — isto sem deixar de fora os momentos de confraternização entre trabalhadores, que no passado organizavam excursões, partidas de futebol, festas e outros eventos de cariz lúdico. Mas já lá vamos.
O enfoque no quotidiano laboral da Leica ganha peso com a inclusão do projecto elaborado em Junho de 2023 por Gonçalo Fonseca no interior da fábrica. “Comecei à mesma hora que os trabalhadores, antes de o nascer do sol, e tentei captar as rotinas de um dia típico de trabalho”, conta ao P3 o fotógrafo que também marcou presença no evento.
Há, entre as imagens que realizou, vários retratos de trabalhadores dos vários sectores da empresa, desde a área de mecânica, da óptica, da montagem, do apoio ao cliente, até aos refeitórios ou zonas exteriores da fábrica. A Leica tornou visível o seu trabalho Nova Lisboa, em 2020, quando lhe atribuiu o prémio Oscar Barnack Newcomer. Esse momento de grande visibilidade internacional deu um impulso à sua carreira, motivo pelo qual o fotógrafo sente também fazer parte da família Leica.
Entre o primeiro e o segundo piso, a curadora Karin Rehn-Kaufmann, que é directora de arte e representante das 24 galerias da Leica espalhadas pelo mundo, decidiu exibir algumas das “jóias da coroa” da marca. Essas são as fotografias icónicas, em formato estritamente vertical, da autoria de fotógrafos lendários, como Ralph Gibson, Steve Mcurry, Joel Meyerowitz, Thomas Hoepker e Barbara Klemm, entre outros, que têm em comum o facto de serem vencedores do prémio Leica Hall of Fame, que celebra a carreira de fotógrafos que a empresa considera terem contribuído para o desenvolvimento da marca, bem como da fotografia em geral. O posicionamento no espaço dessas fotografias, que não incluem qualquer tipo de legenda, torna a colecção distante do olhar de quem visita e, assim, menos relevante do que as restantes imagens em exposição.
“A selecção de imagens de toda a exposição foi muito desafiante”, comenta Karin, em entrevista ao P3. “Não quis olhar apenas à qualidade — algumas, dos arquivos privados, foram tiradas com telemóveis ou são muito antigas. Mas isso não foi um problema. O que quis valorizar foi o conteúdo das imagens. O que podemos ver?” A curadora quis que se notasse a evolução dos meios de produção, para que o espectador pudesse confrontar-se com o antigo e o novo. “Essas diferenças tornam tudo mais vívido.”
As imagens que mais a impressionaram foram as que aludem aos momentos de socialização entre trabalhadores. “Eles tinham uma equipa de futebol, um grupo de dança e teatro. Acho que isso é algo muito português. As pessoas gostam de celebrar a vida, de aproveitá-la. Achei isso muito marcante.”
O “Fernandes da Leitz” e o administrador Koch
José Augusto Fernandes, conhecido como o Fernandes da Leitz, era o “chefe da área dos microscópios” e, antes de se reformar, em 2004, era também um dos dinamizadores das actividades extra-laborais da empresa. Recorda com saudade os tempos em que organizava, nas décadas de 1980/90, os jogos de futebol de salão dos trabalhadores. “Nos anos 80, arranjei mais uns quatro ou cinco e formámos um clube desportivo informal. Jogávamos futebol de salão num campo de terra.” Com o tempo, José Fernandes “namorou” o engenheiro Wolfgang Koch, administrador da Leica em Portugal durante 24 anos, entre 1973 e 1997, para que ele financiasse a construção de um ringue desportivo. “Ele dizia que era muito dinheiro, mas lá acabou por fazer.” Todos os domingos havia um jogo de futebol de salão.
“Quando o futebol já estava a rolar, comecei a organizar passeios de bicicleta”, conta. Seguiram-se as excursões, nos anos 1990, que a administração financiava parcialmente, no início, mas na totalidade quando se tornaram num evento anual. “Chegaram a levar 200 pessoas em quatro camionetas.” Com destino a Espanha, a Amarante, a Vila Nova de Cerveira, “todos os anos havia uma”.
“A minha ideia era levar o Sr. Koch, mas quando havia excursão ele ia à Alemanha sempre.” O chefe dos microscópios, hoje com 74 anos, recorda o administrador alemão, já falecido, como um homem muito sério, que conhecia o lugar de cada empregado e que controlava com rigor a produtividade. “Num ano, ele disse que ia falar com a esposa sobre ir a uma das excursões e no dia seguinte disse que iriam experimentar. Como fazer? É fácil. É um garrafão de vinho numa mão e na outra uma cesta com comida.” Koch temia que os trabalhadores aproveitassem a ocasião para falar dos ordenados e Fernandes prometeu barrar quem tentasse fazê-lo. “E ele e a esposa lá foram.”
“Quando chegámos ao destino, ele tornou-se o tipo mais popular dos autocarros”, recorda. “Da cesta, tirou comida para quatro ou cinco, mas ninguém foi lá comer.” A sua figura e postura austeras intimidavam os trabalhadores. “Ele ficou triste. Mas ia comer às toalhas dos outros e tentava entrosar-se. Entrou numa de brincadeira e lá conseguiu quebrar o gelo.” Durante a tarde, uma das trabalhadoras desafiou o administrador Koch a fazer o pino. “Se fizer o pino comigo, eu pago-lhe o jantar à noite”, disse. “E não é que ele fez!?”, exclamou Fernandes, rindo. No ano seguinte, o senhor Koch voltou a ir numa excursão.