O abraço de urso

Não há financiamento sem a criação de relações de dependência perversas.

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Leio e não consigo acreditar. O governo regional dos Açores propõe-se pagar 40% dos salários dos jornalistas que trabalhem na região e que ganhem até 1500 euros por mês com um contrato sem termo. Dou de barato que a intenção seja pia e a motivação altruísta. Mas convenhamos que é preciso uma grande dose de ingenuidade para não perceber o potencial de perversidade da ideia.

Comecemos, pois, pela intenção que, quero mesmo acreditar, é generosa. Poucos duvidarão de que, de facto, o jornalismo tem uma função crucial numa democracia madura e numa sociedade aberta. Desde logo porque tem tradicionalmente (e o tradicionalmente não é aqui inocente) funcionado como moderna ágora onde se torna tangível o “mercado de ideias”, livres e contraditórias, que nos permite uma sempre imperfeita aproximação à “verdade”. Mas sobretudo porque, numa sociedade aberta, os vários poderes instituídos, e em particular os poderes políticos executivos, precisam de ser vigiados e escrutinados por instituições plurais, profissionais e independentes. Sendo que, no mundo livre, os órgãos de comunicação social têm sido a resposta institucional mais eficaz para garantir o cumprimento dessa função.

Acresce que, fruto da inovação tecnológica, da mudança de hábitos sociais, mas também por culpa da própria indústria, a comunicação social vive momentos dramáticos um pouco por todo o mundo. O modelo de negócio mudou radicalmente, a atenção dos públicos divide-se por mais alternativas, os fundos escasseiam, as redações estão enfraquecidas e a função de vigilância e escrutínio vai-se fazendo com cada vez menos rigor e com cada vez menos vigor.

Dir-se-ia, portanto, que a ideia do governo dos Açores faz todo o sentido. Ao apoiar uma comunicação social que opera em condições crescentemente precárias estar-se-ia, precisamente, a garantir que consegue financiar o seu papel crucial de vigilância ativa dos vários poderes.

Sucede que, como aqui escrevi, a propósito de uma ideia igualmente pia do Presidente da República que o Governo insensatamente acabaria por acolher, não há financiamento sem a criação de relações de dependência perversas. E se é verdade que, no caso específico do financiamento do jornalismo, é possível tentar resistir à tentação das ingerências ilegítimas, também é verdade que para o conseguir fazer é preciso observar algumas regras. É, desde logo, necessário criar estruturas de governação sólidas que permitam limitar, nos jornais ou televisões, a real capacidade de os financiadores exercerem uma influência perversa por intermédio dos seus próprios órgãos de gestão.

É necessário, à boa maneira da separação de poderes, garantir uma efetiva diversificação das fontes de financiamento de maneira a assegurar que nenhum financiador pode, sozinho, exercer pressões suficientemente “eficazes”. Mas, sendo certo que não há categorias de financiadores angelicais, é sobretudo crucial não criar dependências da mais perversa de todas estas: o Estado nas suas mais variadas encarnações que deve ser o objeto primeiro da vigilância e escrutínio da comunicação social. Como devia resultar evidente, no dia em que este se tornar o mais relevante financiador da comunicação social, o jornalismo livre e independente rapidamente se tornará num artefacto museológico e a instituição que lhe sobreviverá terá pouca ou nenhuma utilidade social.

É verdade que nada disto é absolutamente inédito. Não será a primeira nem a última vez que o Estado apoia o setor. Nem eu nego, em absoluto, a possibilidade de conceber formas de apoio público que tentem minimizar o potencial de perversidade que sempre encerram. Mas a ideia de um governo distribuir, sem uma ampla discussão e um alargado consenso político, subsídios diretos e continuados, para mais expressamente dirigidos ao pagamento de salários de jornalistas, sem qualquer enquadramento institucional que defenda os financiados dos impulsos dos financiadores, num contexto em que os órgãos de comunicação estão particularmente vulneráveis, é, paradoxalmente, uma ideia particularmente infeliz.

Mesmo que, num qualquer arrebatamento de ingenuidade, queiramos muito acreditar que, na hora da verdade e sob a pressão da primeira crise, o governo dos Açores saberá resistir, como promete, a “qualquer interferência na liberdade editorial dos referidos órgãos de comunicação social” uma coisa é certa: a suspeição estará instalada e a credibilidade dos recipientes destes apoios sairá seriamente abalada.

Um apoio ao jornalismo não deve nem pode ser um mero abraço de urso.

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