Estamos a viver as alterações climáticas em tempo real

Muitos dos fenómenos e recordes climáticos deste Verão eram previsíveis, dizem os investigadores. Mas há surpresas e preocupação pelo que está a ocorrer e pelo que aí vem se não mudarmos de rumo.

Bombeiros combatem o fogo, na zona de Aljezur, concelho de Odemira. Estão no combate às chamas 633 operacionais, apoiados por 206 viaturas terrestres e 10 meios aéreos. O incêndio, que deflagrou na zona de Baiona, na freguesia de São Teotónio, a meio da tarde de sábado, já obrigou a evacuar quatro locais no concelho de Odemira (Vale dos Alhos, Vale de Água, Choça dos Vales e Relva Grande) e uma unidade de turismo rural, num total de mais de 100 pessoas retiradas, 07 de agosto de 2023. LUÍS FORRA/LUSA
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7 de Agosto de 2023: grande incêndio em Odemira Luís Forra/Lusa
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3 de Agosto de 2023: inundações após a passagem do tufão Doksuri, em Zhuozhou, província de Hebei, China TINGSHU WANG/REUTERS
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As fotografias de casas carbonizadas na ilha de Maui, no Havai, de turistas em fuga de Rodes, na Grécia, e das cheias que assolaram a China são imagens difíceis de ser contidas no meio do rol de desastres dos últimos meses. Ao longo de um Verão permeado por ondas de calor, secas e recordes de temperatura, a crise climática vai mostrando a sua pior face, dando chão para a morte de centenas de pessoas. Mas há uma simplicidade agónica na fila de carros que comanda uma fotografia tirada por estes dias, no Canadá, que parece falar sobre um novo tempo.

Yellowknife, uma cidade de 20.000 habitantes que é a capital dos Territórios do Noroeste, teve de ser evacuada. Os incêndios florestais no Canadá, que este ano já consumiram uma área equivalente a um Portugal e meio — devido à seca e às altas temperaturas —, podem atingir aquela povoação neste fim-de-semana, por causa de uma mudança na direcção dos ventos. Temendo a situação, as autoridades canadianas ordenaram a saída das pessoas até às 19h (hora de Lisboa) desta sexta-feira.

Os aviões foram um dos modos de fuga. Outro foram os carros. Na imagem captada por Pat Kane, fotógrafo da região, um bosque de coníferas rodeia a estrada, ocupada por veículos que se estendem ao longo de uma das faixas. Perante a ameaça dos incêndios, não é possível determinar o destino daquelas árvores, assim como não se pode antecipar o futuro da cidade. Mas a fotografia transmite um silêncio na fila interminável de veículos, só suplantado pelo silêncio ainda maior da faixa de rodagem oposta, vazia. É como se, num mundo em mudança, não houvesse a possibilidade de um caminho de volta.

“Estamos a viver em tempo real os efeitos que as alterações climáticas estão a produzir”, diz ao PÚBLICO José Álvaro Silva, climatologista que trabalha para a Organização Mundial de Meteorologia (OMM). “Há cerca de três anos que tenho estado a colaborar nos relatórios anuais do clima da OMM — todos os anos temos imensos extremos para reportar em todo o mundo. Este ano é apenas mais um de uma tendência”, garante.

Ainda assim, há alguns extremos que falam mais alto. Julho passado foi o mês mais quente de sempre à superfície da Terra, desde que se faz um registo das temperaturas. A temperatura média atingiu os 16,95 graus Celsius, de acordo com as contas do programa Copérnico, 1,5 graus mais quente do que a média dos meses de Julho de 1850 a 1900, período considerado um equivalente ao pré-industrial (já se tomarmos como média as temperaturas do século XX, o valor é 1,12 graus a mais).

No início de Agosto, como tem sido seu apanágio nos últimos anos, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, reagiu a este novíssimo recorde. “A era do aquecimento global terminou; a era da ebulição global chegou”, declarou Guterres, numa conferência de imprensa. Há “crianças arrastadas pelas chuvas de monção, famílias a fugir das chamas [e] trabalhadores a sucumbir ao calor abrasador”, descreveu, sentenciando: “As alterações climáticas estão aqui. São aterradoras. E isto é apenas o começo.”

A caminho do Pliocénico

A acumulação na atmosfera de dióxido de carbono (CO2) e de outros gases com efeito de estufa, como o metano, devido à contínua emissão daqueles gases desde o início da industrialização, é responsável por aquele aumento das temperaturas terrestres.

No século XVIII, antes do início da Revolução Industrial, a concentração de CO2 na atmosfera seria de 280 partes por milhão (ppm) por volume. Em 1990, aquando da publicação do primeiro relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, sigla em inglês) — um organismo incontornável que analisa e compila o conhecimento científico produzido na área do clima para informar os governos e os cidadãos —, esse valor já tinha ultrapassado o patamar dos 350 ppm.

O relatório do IPCC trazia algumas projecções, como a concentração futura de CO2 e a evolução da temperatura. No cenário sem controlo das emissões, em que as atitudes em relação às alterações climáticas permaneceriam na mesma — o chamado “business as usual” —, a projecção de CO2 para 2020 andaria pelos 425 ppm. Apesar de aquele cenário não se verificar, de lá para cá há países que têm feito um esforço para reduzir as suas emissões, o valor estimado não está muito acima do real. Em Janeiro deste ano, a concentração de CO2 era de 418 ppm, um aumento de quase 50% em relação aos valores pré-industriais.

A última vez em que a atmosfera teve uma concentração superior a 400 ppm de CO2 foi no Pliocénico, entre há 5,3 e 2,6 milhões de anos, quando o planeta era dois a três graus mais quente, os camelos viviam no Árctico e o nível médio do mar estava 15 metros acima do de hoje. Se o uso de combustíveis fósseis continuar ao mesmo ritmo e não houver uma mudança real na forma como se produz energia, o futuro parece caminhar para esses valores. Estima-se que, de acordo com as actuais promessas dos países em relação ao corte de emissões de gases com efeito de estufa, a temperatura média da Terra subirá entre 2,4 e 2,9 graus acima dos valores pré-industriais até 2100. Para já, o planeta já atingiu uma temperatura de 1,2 graus a mais.

“O que se previa há 25 anos para esta altura era um aumento desta ordem de grandeza da temperatura de que se está a falar agora, entre um grau e 1,5 graus Celsius”, adianta ao PÚBLICO Ricardo Trigo, climatólogo da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que nas últimas décadas se tem dedicado ao estudo dos fenómenos extremos.

Tanto a Europa como o Árctico estão a viver subidas na temperatura média que são cerca do dobro e do triplo da média global, respectivamente, o que torna os fenómenos extremos mais intensos. “Os tais modelos de cenários de alterações climáticas previam para o Mediterrâneo um aumento da temperatura média, um aumento exacerbado das ondas de calor e uma diminuição da precipitação”, explica o investigador.

Situações como os incêndios florestais, vividos recentemente na Grécia e em Portugal, e esta semana em Tenerife, nas ilhas Canárias, são exacerbados por aquelas condições. A falta de humidade, característica das secas, diminui a possibilidade de os solos evaporarem e de as plantas transpirarem, o que reduz a capacidade de um território baixar a temperatura no decorrer de uma onda de calor.

Como consequência, ondas de calor com temperaturas ainda mais altas e a vegetação desidratada abrem a porta para incêndios com dimensões que até há uns anos eram desconhecidas, como os que já assolaram a Califórnia e como o de Pedrógão Grande, que matou 66 pessoas, deixou um rasto de destruição e marcou o ano de 2017. “Talvez nos anos 1990 não se desse o devido valor à relação entre secas e ondas de calor, que sabemos agora que é crucial”, avalia Ricardo Trigo.

Os limites do oceano

Além disso, há uma impressão digital das alterações climáticas nos novos recordes de temperatura que têm sido alcançados, como o que ocorreu no aeroporto de Valência, durante a terceira onda de calor vivida em Espanha, que terminou no domingo último, em que o novo máximo de 46,8 graus ultrapassou o anterior em 3,4 graus.

“A margem de distância com que os recordes são batidos é um resultado das alterações climáticas”, explica por sua vez Samantha Burgess, directora do Serviço de Alterações Climáticas do Programa Copérnico (C3S, na sigla em inglês), da União Europeia.

Ainda Julho não tinha terminado e já cientistas da iniciativa Atribuição Meteorológica Mundial (no original, World Weather Attribution) publicavam uma avaliação que mostrava que as ondas de calor que ocorreram naquele mês no Sul dos Estados Unidos e no México, no Sul da Europa e na China estavam associadas às alterações climáticas. Sem elas, aqueles eventos teriam a probabilidade de ocorrer uma vez a cada 250 anos na China e “seriam virtualmente impossíveis de ocorrer na região do México/Estados Unidos e no Sul da Europa”, lê-se no site da iniciativa.

Mas há surpresas nos recordes de Julho. “Um deles foi a margem absoluta pela qual o recorde anterior de Julho de 2019 foi quebrado, com uma anomalia de temperatura de 0,72 graus em relação a 1991-2020 para Julho de 2023, contra 0,4 graus para Julho de 2019”, refere a directora do C3S, num email ao PÚBLICO. “Também foi surpreendente o tempo em que a temperatura média global diária se manteve acima do anterior recorde de Agosto de 2016. Todos os dias de 3 a 31 de Julho foram mais quentes do que o recorde anterior.”

Apesar desta tendência da temperatura, o que está a preocupar mais Samantha Burgess é o recorde de temperaturas atingido nos oceanos “devido aos impactos globais de longo termo, quer físicos, quer químicos e biológicos”. No início do mês, as águas do mar atingiram uma temperatura média de 20,96 graus. O aquecimento global e o fenómeno de aquecimento das águas superficiais do oceano Pacífico — o famoso El Niño — terão um papel neste fenómeno.

“A temperatura da superfície do oceano apresenta em 2023 uma variação que é completamente anormal”, diz ao PÚBLICO Miguel Miranda, geofísico e ex-presidente do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), que também está preocupado com esta situação.

O geofísico explica que a água tem uma grande capacidade térmica. Ou seja, a sua temperatura sobe pouco mesmo que absorva muito calor. Calcula-se que os oceanos da Terra tenham absorvido cerca de 90% do calor extraordinário acumulado por causa do aumento de gases de efeito de estufa. Mas até o oceano tem limites.

“O oceano tem sempre sido visto como a solução para os problemas da humanidade. Mas essa solução tem muitos ‘e ses’. Todas as variações do oceano são tipicamente mais lentas, mas elas são muito mais persistentes, assim que os fenómenos se iniciam não terminam rapidamente”, refere Miguel Miranda, acrescentando que o fenómeno deste ano “é como se na camada de cima do oceano já estivesse a haver um aumento de temperatura acima da expectativa”.

Este aumento de temperatura pode ajudar a criar tempestades mais energéticas e tem impacto na biodiversidade, fomentando a fuga de animais, como os peixes, para regiões mais frescas ou provocando a lixiviação e a morte de corais — neste momento, os corais no golfo do México e na costa da Florida correm esse risco. Por outro lado, qualquer líquido dilata à medida que aquece, e o oceano não é diferente, o que provocará a subida do nível do mar, com impacto nas regiões costeiras.

“O aviso é suficientemente forte para ficarmos em alerta”, diz Miguel Miranda. Apesar de toda a adaptação e mitigação que os fenómenos que estamos a viver exigem, o investigador defende que é necessário mais: “Por muitas voltas que demos, é preciso reduzir as emissões de gases com efeito de estufa.”

O tempo do clima

Em 2015, o Acordo de Paris definiu entre os países signatários que o corte de emissões de gases com efeito de estufa teria como objectivo impedir que a temperatura média da Terra não ultrapassasse os dois graus acima do nível pré-industrial e, de preferência, ficasse abaixo dos 1,5 graus — uma meta que parece ser cada vez mais difícil.

“Cada vez mais falamos da necessidade da adaptação às alterações climáticas, mas não podemos esquecer que os impactos futuros são muito dependentes da trajectória de emissões de gases que temos hoje”, recorda ao PÚBLICO Joana Portugal Pereira, engenheira do ambiente e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Brasil.

Nos últimos anos, a investigadora tem colaborado na produção de relatórios para o IPCC, analisando as trajectórias de emissões de gases com efeito de estufa dos países. “O grau da gravidade dos impactos futuros está condicionado ao nosso perfil de emissões actual”, afirma. “Estamos no caminho certo, mas temos uma inércia institucional, governamental.”

No primeiro relatório da sexta e mais recente avaliação do IPCC sobre o clima, publicado em 2021, a aritmética das alterações climáticas ficava clara. Se a temperatura da Terra subir dois graus, fenómenos extremos de temperatura poderão ser 5,6 vezes mais frequentes do que eram no mundo pré-industrial. Se essa subida atingir os quatro graus, irão ocorrer 9,4 vezes a mais. Será uma outra Terra.

Para Ricardo Trigo, o que impressiona é atingirmos temperaturas que provoquem alterações que não voltam para trás na escala da vida humana, como o fim da floresta amazónica, a libertação do metano e do CO2 que estão armazenados no pergelissolo da Sibéria e o colapso da corrente do Atlântico. “Do ponto de vista de sustentabilidade da Terra à escala dos próximos 500 mil anos, faz muita impressão que não se tenha uma percepção aguda de que estamos a alterar as condições desses pontos de não retorno, alguns deles irreversíveis.”

Mas, muito antes disso, os desastres que durante este Verão transformaram a vida de tantas pessoas irão intensificar-se, acredita Miguel Miranda. “Vamos ter problemas muito mais graves antes de 2050. Fenómenos extremos de uma dimensão que ainda não conhecemos”, antecipa, num discurso a que alguns chamariam catastrofista, mas que o geofísico aponta como uma oportunidade. “Na verdade, acredito que serão esses problemas que vão levar à necessidade de medidas mais extremas de cortes de emissões.”

É só necessário que o clima dê tempo, para que as sociedades possam responder a essas mudanças, como ocorreu com os 20.000 habitantes da cidade do Canadá, que puderam fugir e pôr-se a salvo. “Precisamos que o clima nos dê um tempo de adaptação”, assume o geofísico. “Há um risco de isso não acontecer, esperemos que não seja elevado, mas tem de ser encarado.”