Acerca do Serviço Nacional de Saúde: um problema de atitude

A governação propõe medidas provocatórias que só precipitarão a debandada dos médicos do SNS. Uma (que nos deve envergonhar) é a angariação de médicos menos diferenciados em países mais carenciados.

Ouça este artigo
00:00
05:46

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Como ponto de partida, declaro não ter condicionamentos de natureza político-partidária e muito menos procuro falar por alguém, além de mim.

Há momentos que nos pedem uma certa exposição e parece-me especialmente oportuno que alguns médicos o façam agora. A alternativa é a de as nossas conversas se manterem silenciosas, permitindo que o espaço público se ocupe com as conversas dos outros. E pior ainda, com as conversas que os outros vão tendo acerca de nós.

Os sindicatos darão de si, fazendo o barulho dos sindicatos. Mas o suspense das rondas negociais sempre terá um je-ne-sais-quoi de secretismo e obscuridade. Além do papel dos sindicatos, é importante que usemos da palavra.

O assunto é o descontentamento de alguns médicos. Sendo os médicos a que me refiro aqueles que abraçam a bandeira do Serviço Nacional de Saúde. Desconheço as percentagens relativas dos colegas em regime de dedicação exclusiva (ao SNS ou ao setor privado) e dos colegas com dedicação a ambos. Ainda que sem o rigor dos números, a tendência parece ser a debandada do SNS, tanto para o setor privado quanto para países que disponibilizam condições mais atrativas. Mas parecendo de crer, a médio prazo, que o adoecimento do SNS será o adoecimento dos médicos do setor privado.

Em traços gerais, além dos contratos antigos e de exceções muito pontuais, o salário atual dos médicos do SNS é confrangedor. Daí que alguns de nós (nos quais ainda me incluo residualmente) procurem complementar os vencimentos com alguma atividade privada. Depois, temos a franja crescente dos médicos que se dedicam exclusivamente ao setor privado. Tendencialmente, estarão aqui os melhores vencimentos e as condições de trabalho mais gratificantes. Importará esclarecer que o descontentamento dos médicos que trabalham no SNS não se resume aos salários, incidindo numa série de circunstâncias que se pretendem corrigidas, com vista a uma melhor prestação dos cuidados de saúde.

Acredito que o grosso de nós – médicos e não médicos – entenda o significado e o alcance dos constrangimentos financeiros do país. O dinheiro não estica com facilidade e essa é a nossa triste realidade. Não me ocorrem classes profissionais portuguesas, sobretudo as que dependam de dinheiros públicos, que se considerem realizadas com os seus termos. São confrangedoras as circunstâncias dos professores, são confrangedoras as circunstâncias das forças de segurança, são confrangedoras as circunstâncias duma larga maioria de portugueses que liga a televisão e se frustra com a desigualdade ao seu redor. Mas tudo isto é uma história antiga e bem mais antiga do que a atual governação.

No que respeita aos médicos do SNS, o principal problema do primeiro-ministro e do ministro da Saúde é de fácil resolução, por não se tratar de um problema de dinheiro. É um problema de atitude. Acredite-se que os médicos do SNS não pretendem o estatuto de estrelas, nem têm expectativas irrealistas de quadruplicação de salários. O que me parece especialmente preocupante, mais do que a aproximação ao ponto de rutura, é a aparente motivação política para que tal aconteça. É a atitude jocosa, provocatória, beligerante e retaliativa com que se referem a nós, agravada pela satisfação que parecem sentir ao dizê-lo. E convenientemente esquecidos da sua dívida de gratidão para com o SNS, que lhes salvou as vidas e as faces durante a pandemia. A tristeza e o desânimo que os médicos do SNS têm procurado expressar – e fizeram-no, através do espírito simbólico e democrático da greve – reclamam pouco mais do que algum suporte, validação e compromisso de honra por parte do Governo. O compromisso de que haverá esforço, renovando-nos a esperança de que possa haver alguma vontade política de manter vivo o SNS.

Em suma, o ponto da situação parece ser o seguinte.

O país depara-se com o descontentamento dos médicos do Serviço Nacional de Saúde. Esse descontentamento está devidamente fundamentado e relaciona-se não só com as condições salariais, mas sobretudo com a panóplia de circunstâncias que os impede de melhorar o atendimento aos seus utentes. A resposta do Governo ao descontentamento – ordeiro e relativamente silencioso – tem sido uma atitude beligerante e retaliativa.

Identifica-se uma série de indicadores de que existe motivação política para depauperar o SNS em favorecimento do setor privado. As carências atuais do SNS serão agravadas pela debandada dos seus médicos. Estranhamente, a governação parece revelar satisfação e propõe medidas provocatórias e que apenas precipitarão essa debandada.

Uma dessas medidas (que nos deve envergonhar, pois atenta contra o nosso caráter nacional e coletivo) consiste na angariação de médicos menos diferenciados em países mais carenciados do que o nosso, com claro recurso ao oportunismo e à instrumentalização das suas precariedades e vulnerabilidades, mas cerimonialmente vendida como um ato de diplomacia e magnanimidade. Importará esclarecer que, da nossa parte, todos os colegas serão recebidos sem animosidade, pois trazem na bagagem a justa expectativa de poderem melhorar as suas vidas (assim como aqueles de nós que emigraram pelo mundo desenvolvido). No entanto, à superfície, estarão a ser propostos a esses colegas salários semelhantes aos nossos (o que seria justo), mas com a nuance de que uma parte substancial desse dinheiro servirá, seguramente, para pagar às empresas privadas que intermediaram a sua angariação e prestação de serviços. Julgo que esses colegas rapidamente concluirão que foram enganados, numa jogada de claro oportunismo.

Por alguma razão, Portugal não acompanha a tendência dos outros países europeus ao nível do respeito e valorização dos seus. É desolador perceber que as transformações silenciosas que se processam ao nível da Saúde beneficiam muita gente, mas jamais beneficiarão os utentes mais desfavorecidos (os cronicamente castigados). Ainda assim, acredito que uma eventual viragem de atitude da atual governação, para outra mais humilde e empática, pudesse apaziguar os ânimos e devolver alguma esperança a quem pretende dedicar-se verdadeira e exclusivamente ao SNS.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 4 comentários