Jerusalém do Romeu: o monte das oliveiras (e dos sobreiros) transmontano

O nome de Clemente Menéres está gravado nas pedras e a devoção à santa na pele. A história desta aldeia de Mirandela quase pode resumir-se assim: um santuário e um homem.

PP - 15 JULHO 2023 - ROMEU - JERUSALEM DO ROMEU
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João Menéres observa parte do império construído a pulso pelo seu trisavô Clemente Menéres Paulo Pimenta
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João Menéres, trineto de Clemente Menéres Paulo Pimenta
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Olival, sobreiral e vinha compõem as culturas da Quinta do Romeu Paulo Pimenta
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O restaurante Maria Rita é uma referência na região e fora dela Paulo Pimenta
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A caminho do santuário de Nossa Senhora de Jerusalém Paulo Pimenta
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Imagem de Nossa Senhora de Jerusalém no altar-mor do santuário Paulo Pimenta
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São poucas as vezes ao ano em que a porta do santuário se abre. “Um ou outro casamento, mas são raros. Depois há missa no Ano Novo, no Corpo de Deus e no dia da festa, que é o domingo mais próximo a 8 de Setembro”, diz Manuel Costa, enquanto tira a chave do bolso e faz rodar a fechadura do Santuário de Nossa Senhora de Jerusalém. Fora estas datas, a capela, que fica bem no alto da aldeia, rodeada de olivais (isto não é só um pormenor) e de alguns afloramentos graníticos, permanece entregue ao seu silêncio e isolamento. Merecia outra dignidade, ela que é testemunha de alguns séculos de História.

Manuel, que antes até nem era o guardião desta chave – “Era o meu sogro, comecei a vir com ele e olhe…” –, abre-nos então a porta e seguimos “o professor”. Pedro Beato, 72 anos, já deixou a escola mas toda a gente em Mirandela (e arredores) continua a referir-se-lhe como “o professor”. Ensinou História e veio a Jerusalém do Romeu ajudar-nos a compreender a toponímia (e não só) desta aldeia de Trás-os-Montes.

“O território onde se encontra Jerusalém do Romeu tem ligações à Pré-História recente. O local onde está edificado este templo está ligado à Ordem de Malta. A capela vem unir estes séculos de História”, introduz Pedro Beato, apontando depois para a lápide onde se pode ler que frei Agostinho de Santa Maria, no seu livro Santoario Mariano, refere que a fundação do templo “é muito anterior à era de 1612”.

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Santuário de Nossa Senhora de Jerusalém Paulo Pimenta
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Pedro Beato, professor de História aposentado, no exterior do santuário de Nossa Senhora de Jerusalém Paulo Pimenta

Olhando para a imagem de Nossa Senhora em destaque no altar-mor – “uma imagem de vestir, que cria relações muito íntimas com as populações, dado que o enxoval da santa é feito por pessoas da terra” –, Pedro Beato arrisca datá-la da segunda metade do século XVI. “Apesar de ser uma santa de roca, ou seja, sem corpo, apresenta um rigor imagético que só começa a observar-se depois de 1563.”

“No altar da epístola”, no lado direito da capela, uma pintura mural “evoca o que se vê no Monte das Oliveiras”, em Jerusalém. Por cima desta, outra pintura recorda a lenda da Senhora que apareceu a uma pastora e fez brotar uma nascente em terra “muito falha em água”, lê-se nas Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, de Francisco Manuel Alves, o abade de Baçal. Em agradecimento pelo milagre, a pastora terá instado o povo a edificar a capela “na encosta do cabeço”, próxima da fonte.

Saímos da capela, enfrentamos o sol quente desta tarde de Verão e Pedro Beato continua a descodificar o que vemos. Em frente ao santuário há um tanque hexagonal, “um favo de mel, que simboliza o alimento”. Atrás deste, uma imagem de Nossa Senhora, “numa posição de acolhimento”. E, ao fundo, um banco de pedra. “O peregrino chega, senta-se nele e tem uma dimensão fantástica do que está aqui à volta.” E são sobretudo oliveiras. “Estamos, também aqui, num Monte das Oliveiras”, sorri Pedro Beato. Bem-vindos a Jerusalém do Romeu.

O legado de Clemente Menéres

A história de Jerusalém do Romeu, que hoje integra a União de Freguesias de Romeu e Avantos, município de Mirandela, é indissociável da história de Clemente Menéres, um negociante que aqui chegou em 1874 e deixou marcas inapagáveis no território. Natural da então Vila da Feira, Clemente Menéres tinha negócios no Porto ligados à produção e exportação de cortiça e veio para Trás-os-Montes em busca de matéria-prima.

“Quando cá chegou, percebeu que não tiravam a cortiça das árvores e pôs-se então a comprar sobreirais”, recorda João Menéres, trineto de Clemente. Reza a história que, em apenas sete dias, Clemente Menéres tinha já 38 títulos de compra de propriedades. À data da sua morte, em 1916, eram 2185 as escrituras de compra, evoca um mapa emoldurado na casa de família, mesmo à entrada de Jerusalém do Romeu.

Embora mantendo e até alargando os seus negócios no Porto, Clemente Menéres foi direccionando para o Romeu o grosso “dos seus esforços pessoais”, conforme se pode ler na investigação de Jorge Fernandes Alves De pedras fez terra: um caso de empreendedorismo e investimento no Nordeste Transmontano (Clemente Menéres). Aos sobreirais, juntou entretanto os olivais e também as vinhas, três culturas cujo ciclo de produção ocuparia o ano todo.

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A história de Jerusalém do Romeu está intimamente ligada à Quinta do Romeu Paulo Pimenta
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Pelos caminhos da Quinta do Romeu Paulo Pimenta

A Quinta do Romeu, “que ainda se mantém na descendência directa do seu fundador”, prossegue a produção de vinhos e azeites e a exploração da cortiça. Numa pick up que vence as agruras do terreno, João Menéres leva-nos ao olival dos Tocos, de onde se tem uma vista abrangente deste império construído a pulso pelo seu trisavô. Pintados de amarelo, a adega, os armazéns, os muros que guardam a casa de família. De verde pinta-se a terra: videiras (25 hectares), oliveiras (120 hectares), sobreiros (3000 hectares).

Impressiona a forma como os sobreiros crescem no meio das fragas graníticas. “Quando o meu trisavô se pôs a comprar terras, as pessoas diziam ‘Anda por aí um maluquinho a comprar pedras’”, sorri João Menéres, enquanto conduz a pick up por caminhos que nos parecem impossíveis. Estamos justamente na época de extracção da cortiça e apanhamos os homens na pausa de almoço.

- Que tal vai isso, Nelson?

-Tudo a correr bem.

Eis que chegamos ao que resta da Fábrica Velha, que Clemente Menéres mandou edificar em 1878. Quando percebeu que, devido às características do terreno, o transporte das pranchas de cortiça daqui para o Porto era muito complicado, Clemente decidiu-se pela construção de uma fábrica de rolhas, nas imediações de um açude que igualmente mandou construir. Ainda hoje lá está um busto em sua memória.

Foi também ele quem cedeu uma casa ao Estado para nela funcionar a escola primária – um edifício que ainda está de pé, à entrada da aldeia – e foi igualmente um dos principais responsáveis pela chegada do comboio ao Romeu, em 1905. A estação ainda lá está, confinando aos terrenos da quinta, mas os comboios já se foram. A reconstrução da capela de Nossa Senhora de Jerusalém, em 1897, também foi obra sua e de um grupo de outros benfeitores, assinala o abade de Baçal.

As dores da interioridade

Hoje, Romeu e a sua Jerusalém – na prática um lugar da antiga freguesia independente, que se juntou a Avantos em 2013 – é uma localidade que sofre as dores da interioridade. Andámos por lá duas vezes, em Junho e em Julho, e praticamente não vimos gente na rua. A maior parte das casas estão fechadas. O presidente da União de Freguesias, Bernardino Pereira – que diz ser o presidente de junta português há mais tempo em exercício, 45 anos, uma vez que, graças à junção das freguesias, ainda não foi afectado pela limitação de mandatos – garante que no Romeu vivem “umas 150 pessoas”. Os Censos de 2021 agregam as duas freguesias e assinalam 341 habitantes.

Mariana Nascimento, que foi mãe há coisa de 15 meses, diz que o seu filho Lourenço “é a única criança de Jerusalém do Romeu”. Ela e o marido, que até vivem numa casa anexa à desactivada escola Clemente Menéres, mandaram o menino para a creche em Mirandela, “para poder socializar”. “É um bocadinho triste, mas aqui é assim.”

Mariana é funcionária do Maria Rita, aquele que será o maior pólo de atracção de forasteiros ao Romeu. Quando Clemente Menéres aqui chegou, foi na estalagem da Maria Rita que procurou alimento. “Cheguei à povoação do Romeu às quatro horas da tarde do dia 18 de Maio de 1874. Procurei uma estalagem e encontrei a única que lá existia e que era da senhora Maria Rita que, por sinal, nada tinha que nos dar de comer. Mandei então assar bacalhau, acompanhado de pão negro de centeio”, escreveu o próprio.

Em 1966, o seu filho Manoel adquiriu o que restava da estalagem, reconstruiu-a, “trouxe o recheio de uma das suas quintas”, conforme se lê no site da Quinta do Romeu, e abriu o restaurante, que manteve o nome da estalajadeira que recebeu Clemente Menéres na sua chegada ao Romeu.

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O restaurante Maria Rita é uma referência na região e fora dela Paulo Pimenta

Hoje, o Maria Rita é uma referência na região – e para além dela. É um templo do bem comer transmontano, onde se servem sobretudo receitas de família. O bacalhau à Romeu, a sopa seca e a mousse de chocolate com azeite, por exemplo, fazem parte do menu com que o Maria Rita se destacou no concurso 7 Maravilhas à Mesa, tornando-se a mesa de Mirandela. Está disponível por 25€.

Mas há mais para provar nesta casa: os vinhos e os azeites da Quinta do Romeu, claro, que têm destaque na carta; a açorda de espargos bravos com carnes (27€) ou a feijoca à trasmontana (23€). Como se não bastasse a comida, o Maria Rita é, também, um hino ao espírito empreendedor de Clemente Menéres. As três salas interiores, repletas de memorabilia, são encantadoras e a esplanada imperdível durante o Verão.

Lá fora, crescem as rosas que também dão nome à aldeia. Cães pachorrentos dormem à sombra das casas de pedra, a capela e o pelourinho brilham ao sol da tarde. Uma tília enorme debita o seu perfume junto ao tanque público e atrás dele há um detalhe que vale a pena observar. “É uma janela de avental com prato. Mostra-nos que esta é uma janela para cumprimentar quem passa e não apenas para arejar a casa e sacudir o pano do pó”, descreve Pedro Beato.

Assim sendo, boa tarde, Romeu.

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